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Agradeço as oportunas e coerentes intervenções dos comentaristas criticando o proselitismo irresponsável do globoritarismo apoiado pela mídia amestrada banalizando as Instituições e o Poder do Estado para a pratica sistemática de crimes. Os brasileiros de bem que pensam com suas próprias cabeças ja constataram que vivemos uma crise moral sem paralelo na historia que esgarça as Instituições pois os governantes não se posicionam na defesa da Lei e das Instituições gerando uma temerária INSEGURANÇA JURÍDICA. É DEVER de todo brasileiro de bem não se calar e bradar Levanta Brasil! Cidadania-Soberania-Moralidade

3.04.2008

Mídia Sem Máscara entrevista Mendo Castro Henriques - Parte I


por Editoria MSM em 02 de março de 2008

Resumo: Na primeira parte da entrevista, discute-se a influência da filosofia de E. Voegelin, seu possível legado e suas contribuições à ciência política.

© 2008 MidiaSemMascara.org

Apresentação

A convite da É Realizações Editora, o filósofo, professor e escritor português Mendo Castro Henriques estará em São Paulo entre os dias 04 e 06 de março de 2008, primeiramente ministrando palestra sobre o livro “Hitler e os Alemães”, de Eric Voegelin, publicado pela É Realizações em lançamento simultâneo às “Reflexões Autobiográficas”, do mesmo autor. Sobre este último livro, e na mesma data, a palestra será proferida pelo filósofo Olavo de Carvalho, via videowebconferência. Em seguida, nos dias 05 e 06, o Prof. Mendo Castro Henriques ministrará um Curso de Introdução à Filosofia Política de Eric Voegelin, também no auditório da É Realizações. Para maiores informações, clique aqui.

Nascido em dezembro de 1953, o Prof. Mendo Henriques é doutor em Filosofia Política pela Universidade Católica Portuguesa e autor, tradutor e coordenador de edição de uma bela dúzia de livros de grande importância, dentre os quais, e para o momento, destacamos aqueles dedicados à obra de Voegelin e sua filosofia: “A Filosofia Civil de Eric Voegelin” de M.C. Henriques e Estudos de Ideias Políticas – De Erasmo a Nietzsche”, de Eric Voegelin, tradução e abreviação de M.C. Henriques. Cremos, entretanto, que isto não define nem apresenta por completo nosso entrevistado de hoje, a julgar por suas declaradas áreas de investigação, que se concentram na filosofia, certamente, mas abrangem também cidadania, história das idéias, lusofonia, história militar e prospectiva estratégica. Esperamos que nesta entrevista ao Mídia Sem Máscara o Prof. Mendo Henriques possa sentir-se à vontade para discorrer sobre tão variados assuntos, ainda que o foco inicial e principal incida sobre a obra de Voegelin, em especial sobre os títulos citados logo de início.

Aos leitores do MSM, além dos votos de bom proveito, fazemos apenas um alerta: o Prof. Mendo responde numa língua que talvez já não reconheçamos muito bem; é a língua portuguesa.

***

MSM: A obra de Eric Voegelin (1901-1985) começou a ser conhecida da comunidade acadêmica portuguesa já no início ou em meados dos anos 80. Em 1992, a sua dissertação de doutoramento "A Filosofia Civil de Eric Voegelin" praticamente inaugura a filosofia voegeliniana na universidade portuguesa. A inclusão de Voegelin no currículo da Universidade Católica Portuguesa é fato que, por si só, a coloca muito acima da soma de todas as universidades brasileiras, lugares (ou nenhures) onde até mesmo Platão e Aristóteles têm sido vistos sob variados disfarces. De fato, no Brasil, e a despeito da meritória tradução de "A Nova Ciência da Política" por José Viegas e das muitas palestras e cursos livres do filósofo Olavo de Carvalho, Voegelin é ainda virtualmente um desconhecido no meio acadêmico; não há nem sequer uma rejeição a Voegelin; é ignorância no sentido literal. Isto posto, lhe perguntamos: hoje já é possível falar numa geração de discípulos portugueses de Eric Voegelin, a exemplo daqueles americanos e alemães que organizaram os 34 volumes das Collected Works? Que conseqüências o senhor imagina ou espera de tal geração?


Mendo Castro: É cedo para falar de uma geração de discípulos portugueses apesar do trabalho já feito e de publicações que se avizinham, nomeadamente a edição em 4 volumes de uma História da Filosofia Política - Dos Megalitos aos Astronautas, em que alternarão textos de Eric Voegelin com o de estudiosos portugueses que cobrem áreas e épocas que o grande filósofo político germano americano não abrangeu. Mas decerto que vamos a tempo de preparar uma geração portuguesa e brasileira de voegelinianos. Talvez tenha chegado a hora de, ponderando o ciclo da jovem democracia portuguesa pós 1974 que inaugurou o que Samuel Huntington chamou de ‘terceira vaga’ e, eventualmente, da jovem democracia brasileira pós-1985, redescobrirmos as constantes seculares do nosso consensualismo.


Do ponto de vista português, importa reencontrar a tradição democrática portuguesa. São esses factores democráticos da formação de Portugal como escreveu Jaime Cortesão que levaram às Cortes de 1254, e à criação do primeiro Estado pós-feudal da Europa após as Cortes de Coimbra em 1383, onde foi aplicado o princípio do quod omnes tangit ab onmibus decideri debet. Esse modernismo do país permitiu-lhe ser a vanguarda da expansão europeia no mundo. A restauração da independência em 1640 foi justificada pelas teorias cristãs da soberania popular que serviram de inspiração a todos os consensualistas para resistirem ao absolutismo iluminista. E a Revolução Liberal de 1820 foi qualificada como restauração das antigas liberdades usurpadas pelo despotismo ministerial e pelas ocupações e protectorado de franceses e ingleses. No Brasil creio ter sido esse o papel de José Bonifácio de Andrada, por exemplo. Mas isso eu tenho de aprender com os brasileiros. Com tudo isto presente, diria que só é novo aquilo que se esqueceu.


MSM: A sua primeira vinda ao Brasil, a convite da É Realizações, se dá quando esta publica as traduções de duas importantes obras de Voegelin, "Hitler e os Alemães" e "Reflexões Autobiográficas". Sem querer adiantar a sua palestra, fale-nos um pouco acerca desses dois livros e da importância que o senhor atribui à sua publicação no Brasil.

Mendo Castro: São duas escolhas felizes de obras muito diferentes. Sobre ‘Hitler e os Alemães’, escrevi que não é um assunto do passado porque a consciência humana vive na tensão permanente entre o tempo e os valores espirituais eternos. E o que está eternamente vivo tem que ser preservado e defendido no presente. Outra das razões da grande actualidade deste livro é que ele constitui não apenas um exorcismo dos ‘demónios’ que praticam crimes, como dos “estúpidos” que os permitem e esquecem. Tal como Alexandre Soljhenitsyn em Arquipélago Gulag, Eric Voegelin quer tirar do esquecimento tanto os que resistiram como os que ofenderam. É o mesmo esforço de anamnese, o esforço de ser ‘senhor de si’ e de ‘dominar o presente’ para elevar o nível de concentração espiritual mediante a filosofia que permite julgar a ordem e a desordem históricas concretas.


Quanto a Autobiografia é daqueles livros que quanto mais curto melhor, pois as coisas simples não precisam de muito discurso barroco para serem comunicadas. A vida de Eric Voegelin é essencialmente a sua vida académica. A sua passagem para a América em 1939, depois o regresso à Alemanha em 1958 e novo retorno à América em 1969 resultaram que a vida de um filósofo politico deve acompanhar a das suas ideias. Ele fez esse shuttle entre as duas metades do Ocidente porque as acreditava unidas por príncipios comuns da herança classica e cristã. Hoje vivemos uma situação mais complexa porque qualquer das metades do Ocidente tem sido vítima de complexos de inferioridade e urge estabelecer os princípios clássicos e cristãos nos quadros das democracias nacionais e numa situação de poliarquia internacional.


Saírem no Brasil estes dois livros, pela mão do Olavo de Carvalho e do Edson Filho é para mim um privilégio poder partilhar. Não o digo só por grande amizade para com ambos; digo-o, também, por acreditar na missão da lusofonia. E os símbolos são-nos favoráveis pois estamos em ano do bicentenário de chegada de D. João no Brasil.

MSM: A despeito da opinião de alguns críticos de que a filosofia política de Voegelin estaria separada da política “real”, Ellis Sandoz afirma que uma das razões que levaram Voegelin a retornar à Alemanha em 1958 era o seu desejo de estabelecer em Munique um instituto que pudesse ajudar a trazer a democracia constitucional americana para a Alemanha; e que verdadeiramente, as palestras de Voegelin, que deram origem a "Hitler e os Alemães" são uma prova de que a filosofia política voegeliniana não estava separada da política, mas direcionada ao cerne das questões da ordem política contemporânea. Uma vez que a filosofia de Voegelin tenha talvez um caráter mais diagnóstico do que terapêutico, por assim dizer, o senhor concorda com a interpretação de Ellis Sandoz?

Mendo Castro: Escreveu Henri Bergson em 1911 que, em filosofia, ‘um problema bem colocado é um problema resolvido’. Significa isso que não existe ‘filosofia aplicada’ no mesmo sentido em que se fala da tecnologia como ‘ciência aplicada’. A filosofia pode parecer teórica mas está sempre a pensar no concreto; seus diagnósticos são já indicações terapêuticas, conforme bem sugere a sua pergunta. O próprio termo ‘Ideia’, é proveniente do vocabulário medico helénico onde significava ‘sintoma’. Contudo, este carácter eminentemente prático da filosofia é mal compreendido tanto por dificuldades de comunicação como pela dispersão das linguagens filosóficas que se encontram divididas entre si por um apartheid.


A oportunidade de melhorar esta situação prende-se com a revalorização das filosofias clássicas – platónica e aristotélica – em que os conceitos não são generalidades que depois se aplicam automaticamente a situações concretas mas os conceitos são universais – e nesse sentido concretos do ponto de vista da unidade – que se verificam em circunstâncias particulares concretas. É a famosa dialéctica do Uno e do Múltiplo. Se acrescentarmos a esta postura o crivo da filosofia crítica tal como foi elaborada no séc. XX por Bernard Lonergan teremos as bases para que a filosofia reencontre o seu lugar ao sol. Mas não vai ser fácil, não!”


MSM: Talvez a contribuição mais valiosa de Voegelin à nossa compreensão do fenômeno do nazismo tenha sido a sua análise da dimensão espiritual do problema. O senhor poderia comentar esta dimensão espiritual, ou ainda, a dimensão da desordem espiritual, primeiramente na Alemanha de Hitler, mas no Ocidente contemporâneo como um todo?


Mendo Castro: Em 1964 Voegelin considerou «o problema alemão central do nosso tempo: a ascensão de Hitler ao poder». A sua explicação gira em torno do ‘princípio antropológico; uma sociedade é um ser humano em ponto grande’ e a sua qualidade está determinada pelo carácter moral dos seus membros. A Alemanha dos anos 30 revelava uma profunda deficiência espiritual, intelectual e moral. Hermann Broch escreveu que existia uma misteriosa cumplicidade no mal entre os que não pareciam ser maus. Karl Kraus e Thomas Mann disseram que uma população torna-se ‘populaça’ ao esquecer a capacidade humana de procurar a verdade. Havia falta de humanidade, ‘estupidez radical’, segundo Hannah Arendt. Só depois de bem estabelecidos estes principios é que se compreendem as análises clássicas sobre origens, evolução e queda do regime nacional socialista, e os dados que a economia, a ciência politica acumularam sobre a origem dessa revolução alemã.


A situação actual no que se chama o mundo ocidental é muito diferente. Não faltam actualmente pessoas responsáveis com o sentido da busca da verdade. São escassos os fundamentalistas europeus e americanos. A personalidade moral do indivíduo não está ameaçada pela mediocridade das componentes pessoais, sociais e históricas que se verificava na década de 30. O problema reside muito mais na ingovernabilidade provocada pelos sistemas “midiocráticos” em que a democracia é abusada pelos midia, e em que as sondagens comandam as decisões dos governantes, tomadas a pensar no curto prazo e não no chão moral da história, nem no princípio de responsabilidade de que falou Hans Jonas.


MSM: Uma das grandes contribuições de Eric Voegelin foi a de fazer claríssima distinção entre ideologias e filosofia, gnosticismo e ordem. Ele se dizia avesso aos "ismos", incluindo o conservadorismo, que ele considerava uma "ideologia secundária", de reação às ideologias revolucionárias, o que lhe rendeu algumas duras críticas de parte dos conservadores americanos, ao mesmo tempo em que estes eram seus maiores admiradores. Mas Voegelin parece ter resolvido a questão ao reafirmar sua admiração pela tradição constitucional anglo-americana, que tinha como base uma experiência histórica filosoficamente fundamentada. O senhor poderia comentar essa controvérsia especialmente à luz dos rumos políticos dos Estados Unidos e do Reino Unido, que parecem ter sucumbido a uma grande série de "ismos", incluindo aqui também o fundamentalismo islâmico, o abortismo e uma aparente renúncia à fé e à prática cristã? Se lhe for possível e se o senhor desejar estender seus comentários à União Européia, nós lhe ficaríamos muito gratos.

Mendo Castro: Eric Voegelin actualizou uma linha de pensamento da política que, partindo de Platão, Aristóteles e Cícero, passa por Tomás de Aquino e se revigora com Francisco de Vitória, Francisco Suarez, Johannes Althusius, Comenius, John Locke, Montesquieu e todos os que aceitam a perspectiva pluralista do politico. Por isso rejeitam a omnipotência do Estado, e os pessimismos e optimismos antropológicos de herança maquiavélica e hobbesiana, e da herança de Rousseau ou Ernst Bloch. Nessa tradição clássica e cristã cruzam-se propostas de filosofia política, onde pouco importam as profundas dicotomias entre conservadores e progressistas que ocupam quase todo o debate nos midia. Para esta grande conversação, podem contribuir as correntes de matriz liberal, de marca ética, como Locke, Montesquieu, os federalistas norte-americanos, Benjamin Constant e o krausismo em Portugal e Espanha. As correntes de matriz socialista podem evoluir do federalismo de Proudhon à doutrina das guildes, às teses britânicas do self-govemment e ao cooperativismo. As correntes conservadoras podem reinterpretar o humanismo cristão através do neotomismo, do institucionalismo e do tradicionalismo e reagir contra a omnipotência do Estado soberano absoluto e indivisivel. Mesmo algumas teses progressistas podem retomar as perspectivas da sociedade civil sem Estado, embrenhar-se de autogestão e procurar no small is beautiful, as classicíssimas teses da polis de há vinte e cinco séculos.


É por tudo isto que Eric Voegelin era avesso aos -ismos e se identificou, ele que tinha raízes germânicas, com a tradição constitucional anglo-americana. Mas embora sem o mesmo sucesso histórico, existem outras tradições constitucionais que tiveram e poderão voltar a ter uma palavra.


[O ano de ] 1640 poderia ter sido o ponto de partida para uma ‘portugalização’ de toda a Espanha, para usar uma imagem de Miguel de Unamuno. E, a partir de então, as teses da soberania popular, poderiam ter transformado a Europa Católica na vanguarda da Revolução Atlântica, precedendo as Revoluções Inglesa e Americana e evitando a ruptura de 1789.


Mas isto já é história contrafactual como Niall Fergunson anda fazendo, história de ‘ses’. Infelizmente, em Portugal triunfou a Razão de Estado sobretudo com Sebastião José de Carvalho e Melo que não por acaso carimbou os juristas da Restauração como monarcómacos e republicanos, colocando-os no Index do despotismo iluminista.


MSM: O professor e autor americano Michael P. Federici enumera sete principais contribuições de Voegelin à ciência política e ao conhecimento humano:

(1) a restauração da ciência política por meio da crítica do positivismo;

(2) um diagnóstico da crise do Ocidente;

(3) análise crítica do totalitarismo e dos movimentos ideológicos modernos;

(4) recuperação dos símbolos e experiências originais [engendering] da ordem;

(5) uma filosofia da história;

(6) uma filosofia da consciência

(7) uma moldura filosófica de abertura à transcendência que pode ser usada para restaurar a ordem à civilização ocidental.

Dentre essas contribuições, o senhor poderia destacar aquelas que julga mais importantes, ou ainda, gostaria de acrescentar algum outro componente?


Mendo Castro: Parece-me um excelente resumo. Eu destacaria a filosofia da consciência, porque é a base para todas as outras e acrescentaria que Eric Voegelin veio realizar o que ficou por cumprir no pensamento português e espanhol, após as teses de Francisco Suárez serem utilizadas, mas logo descontinuadas em 1640. Escassos anos após a morte de Suárez, e com excepção dos países católicos na Europa e suas colónias sul-americanas, a Escolástica tornou-se uma curiosidade cada vez mais remota. Ao longo do séc. XVIII, a Escolástica foi objecto de escárnio nos países marcados pelo iluminismo e pelo nacionalismo secularizado. A Reforma quebrara a ingenuidade da existência na história da civilização ocidental que agora tinha que enfrentar o problema da sua historicidade. Com o processo imanentista de secularização, a vida espiritual viu-se progressivamente excluída da ordem pública, um facto apontado pelos escassos pensadores que entenderam a historicidade das Igrejas e a ideia de religião não dogmática, como foram Bodin, Pascal, Hobbes e Espinosa. Em 1700, o declínio do espírito na vida pública era tão evidente que Giambattista Vico descreveu os ciclos de civilização como corsi i ricorsi que duram o tempo de um mito. Um filósofo político deve sempre proceder a um inventário dos poderes concretos e elaborar uma filosofia da história que encontre a ordem significativa na variedade da existência política. E isso implica todos os restantes pontos assinalados nesse resumo de Federici.

Mídia Sem Máscara entrevista Mendo Castro Henriques - Final
por Editoria MSM em 04 de março de 2008

Resumo: Na parte final da entrevista, o filósofo português Mendo Castro Henriques discute a filosofia de Eric Voegelin no entendimento da política contemporânea, a atual situação do Ocidente, Islã e sua posição com respeito à União Européia.

© 2008 MidiaSemMascara.org


MSM: Se um estudante lhe perguntasse, [se é que muitos já não o fizeram] de chofre, "Professor Mendo Castro Henriques: afinal, por que estudar a obra de Eric Voegelin?", qual seria a sua resposta?

Mendo Castro: Para recuperar o tempo perdido… Todos nós perdemos tempo na vida e o melhor modo de o recuperar é iniciar-se na filosofia e partir à descoberta da consciência. Pode-se entrar na filosofia por qualquer uma das suas portas e, como escreveu o grande Leo Strauss, a filosofia política é uma introdução política à filosofia.

Eric Voegelin ajuda a compreeender que muitas das bandeiras políticas que hoje se desfraldam como originárias de 1789 têm raízes bem mais remotas na filosofia clássica e cristã. É o caso dos Direitos do Homem, inequivocamente estabelecidos pelo cristianismo, ou da soberania popular e nacional, teorizada pela Escolástica Peninsular e consagrada pela Revolução Atlântica que, infelizmente, falhou em Portugal e Holanda, mas se estabeleceu na Grã-Bretanha e Estados Unidos.

Com efeito, a Revolução Francesa é o episódio central, mas de modo algum único de uma Revolução Atlântica desencadeada pela Revolução Inglesa de 1649 e continuada pela Revolução Americana de 1778. Aquela Revolução Atlântica que marca o actual modelo ocidental de Estado Constitucional ou de Estado de Direito, em todos os continentes, por oposição aos desvios totalitários contemporâneos, e que já estava presente nas constituições não escritas do Reino Unido ou do Portugal anteriores.

MSM: [Mendo Castro Henriques] vê na poliarquia européia a mais inovadora construção política no início do séc. XXI, um contrapoder indispensável à potência dominante." Pinçamos esta afirmação a respeito das suas idéias, Professor Mendo, pois esta nos parece propícia a questionamentos e esclarecimentos. A poliarquia – governo de muitos – européia é sem dúvida construção inovadora, mas é boa? Essa poliarquia não corre o risco de transformar-se num gigantesco burocratismo? De que forma o senhor entende a indispensabilidade de um contrapoder aos Estados Unidos? Onde entram Rússia e China nessa sua equação? Cremos não haver aqui mera posição ideológica antiamericana e por esta mesma razão, pedimos a sua explanação.

Mendo Castro: A situação actual do Ocidente é muito complexa. O chamado ‘fenómeno bizantino’ dita que os interesses estratégicos da União Europeia e dos EUA sejam divergentes, tal como na Roma clássica, o império do Oriente se separou do do Ocidente. Todos repararam que na independência do Kossovo, ao lado das bandeiras kossovares apareciam as dos EUA, não as da Europa. Quem insiste para que a Turquia entre na Europa são os EUA. Quem provoca a Rússia, ao ponto de chantagear a Europa são os EUA.

Isto não são afirmações anti-americanas. São afirmações para salvar essa grande sociedade dos seus dirigentes. Sabemos que o único candidato presidencial americano em que Eric Voegelin votou foi Adlai Stevenson, o único que se aproximou do ideal de prudência. Os EUA têm tido pouca sorte com seus presidentes e políticos do pós Guerra. Tiveram o que Allan Bloom chamou de ‘fechamento do espírito Americano’. Tiveram o blowback da política de quem é império, por defeito e não por missão. E agora estão a pagar o preço com um ciclo de depressão económica resultante de terem feito o offshoring de muitas das suas indústrias, excepto as de guerra. War is a great racket, como escreveu o general Smedley Butler... A Europa tem outro tipo de deficiências que resultam da enorme dificuldade de estabelecer consensos entre 28 nações e de perder muitas energias em políticas acessórias. Mas a Europa não quer, nem pode nem deve ser um império e isso dá-lhe uma vantagem de softpower sobre os EUA que ela tem usado, para praticar o que chamo de ‘gaullismo global’.

O general De Gaulle afirmava nos anos 60 que a França tinha poucas armas nucleares, mas as que tinha estavam apontadas ‘tout azimuts’, em 360 graus. A Europa cumpre esta função estratégica de não ser a potência militar dominante mas de contrariar qualquer pretensão de império, seja ele os EUA, que já estará desistindo da pretensão após 2009, seja das chamadas potências emergentes como China, Rússia e Índia.

MSM: O senhor mantém contato com lideranças e estudiosos islâmicos, classificados como antifundamentalistas. De todo modo, a presença islâmica na Europa, não raro conflituosa, só faz crescer. No Reino Unido e na Alemanha, o Islã já está a alterar leis e costumes. Qual a sua visão desse fenômeno e quais têm sido as suas manifestações em Portugal?

Mendo Castro: O meu contacto com o Islão é tardio até porque em Portugal, o fenómeno não tem expressão significativa, ao contrário do que sucede noutros países europeus. E contudo a capital de Estado mais próxima de Lisboa, a 400 km, é Rabat, em Marrocos. Para compreeender o Islão, eu adoptei o princípio de Si nolis bellum para pacem. Apresentei resultados iniciais sobre o tema em Madrid, a 21 de Março de 2004, por coincidência na semana seguinte ao atentado terrorista. Em Outubro de 2004 como editor e apresentador do 1º volume do De Legibus de Francisco Suárez, tratei a lei natural como base de aliança entre correntes secularistas e religiosas. Em Março de 2005, em Lisboa, em seminario que dirigi com Mohamed Khachani elucidei a temática numa perspectiva securitária. Apresentei a tradução do livro Os Novos Pensadores do Islão do meu amigo e jovem pensador marroquino Rachid Benzine, cuja edição portuguesa de 2005 foi a primeira a seguir ao original, e retomei a questão no Colóquio Cristianismo e Islão de 2005 na Universidade Católica. No 1º Congresso Internacional sobre o Mediterrâneo, em Roma, em Outubro de 2005, enunciei algumas perspectivas praxeológicas. No Colóquio Direito Natural e Historicidade: diálogo com o Islão, realizado pela Faculdade de Direito do Porto, a 8 de Novembro de 2005, reapresentei o tema. E voltei a ele em Seminário e livro entretanto publicado na Holanda.

Um grande esforço é necessário em ambos os lados do Mediterrâneo para superar equívocos, afastar medos, estabelecer pontes civilizationais, e equacionar as questões da modernização nas sociedades no Sul e nas sociedadede pós-modernas no Norte, para descrever um contexto histórico caracterizado por Shmuel Eisenstadt como ‘de modernidade múltipla’.

O atrasos dos países mediterrânicos muçulmanos na modernização e democratização tem sido atribuído aos mais diversos factores. O problema com a maioria dessas abordagens é que se operam com um conceito determinístico de modernização, como convergência para uma sociedade uniforme, favorecida pelos ‘progressistas’, e odiada por ‘fundamentalistas’; Mas a modernidade é um processo civilizacional que se combina com as identidades nacionais e regionais, com religiões e tradições particulares e essa transformação económica e sociopolítica começou na Europa após os desenvolvimentos científicos e tecnológicos resultantes da filosofia do sec. XVII.

Esta ‘grande transformação’ deslocou da religião para a democracia a base da legitimidade política. A modernização consistiu na reivindicação de direitos do homem, dos direitos naturais subjectivos evidenciadas por Suárez, Grotius, Hobbes, Rousseau e Kant. Mas o racionalismo ocidental não foi construído em oposição à fé. E por isso, a promoção do direito natural pela religião islâmica moderada contribui para a secularização da vida pública, como está em marcha no mundo muçulmano desde o séc. XIX. As relações internacionais devem abandonar o triste conceito de ‘choque de civilizações’ e explorar o conceito de ‘múltiplas modernidades’. Aí os moderados islâmicos serão cada ves mais aliados do Ocidente contra os fundamentalistas. Os novos pensadores do Islão são os que perceberam isto.”

MSM: "Ainda um Esforço Franceses! Já matastes o vosso rei! Falta matar o vosso Deus!". Assim se exprimia, na sua Filosofia da Alcova, Donatien Alphonse François, Marquês de Sade, louco, visionário do que a Revolução não podia nem queria confessar. A Europa já matou seu Deus cristão?

Mendo Castro: A ‘morte de Deus’ é um tema versado na cultura europeia desde há mais de duzentos anos desde as famosas injunções do alemão Jean Paul, passando por Hegel, Nietzsche, Heidegger e Sartre. Temos que admitir que ‘Deus’ é muito resiliente a argumentos de intelectuais porque, passados dois séculos, continua a ser necessário proclamar a sua ‘morte’, como actualmente vemos nos livros um pouco desesperados de Richard Dawkins.

Em paralelo com esse desvio intelectual da ‘morte de Deus’, a Europa do Cristianismo iniciou o movimento hermenêutico em meados do séc. XIX com Schleiermacher. A reconstituição dos contextos do Novo e Antigo Testamento permitiu poderosas expressões como As Vidas de Jesus desde Albert Schweitzer a Romano Guardini, à muito recente de 2007 de Joseph Ratzinger até desembocar nas grandiosas teologias do séc. XX como as de Bultmann, Urs von Balthasar e Bernard Lonergan, só para citar nomes cimeiros. A seu tempo, estas teologias encontraram expressão no Concílio Vaticano II, ou seja no compromisso entre a fé e o mundo, de mais pura raiz paulina.

Neste sentido, por detrás do shakesperiano ‘much ado about nothing’ que caracteriza a conversação nos mídia, eu diria que a Europa reconstituiu o sentido do divino num movimento que só tem paralelo no início da Escolástica dialéctica de Pedro Abelardo, no séc. X. Esse ‘retorno do divino’ se verifica pelas numerosas edições sobre o relacionamento entre ciência e religião; pela reapreciação das origens medievais do mundo moderno, em particular a ética do capitalismo, como demonstra Rodney Stark; pela pujante arquitectura, música e liturgia religiosas. Ainda assim, é um facto que esse ‘retorno do divino’ sofre das querelas entre direita e esquerda, entre conservadores sem futuro e progressistas sem passado. Mas criado o clima cultural certo, o resto depende dos testemunhos pessoais. Santos não se encomendam. Eles simplemente aparecem. Significa isto que o testemunho sobre Deus repousa muito mais na acção e contemplação de indivíduos que nas declarações de intelectuais. Nosso papel como filósofos é libertarmo-nos de estereótipos que encapsulam a realidade em fórmulas, frases ou preceitos genéricos – como fim da historia, nova ordem, etc -, e manter a abertura à realidade.

MSM: O senhor é um patriota português, monarquista democrático, estudioso de assuntos de defesa nacional e interessadíssimo na lusofonia. Como é que todo esse admirável perfil convive com a idéia, ou melhor, com a realidade da poliarquia européia [UE]?

Mendo Castro: O falecido poeta português Miguel Torga escreveu que ‘o universal é o local mas sem muros’. Sem optimismos exagerados, a Europa está tentando fazer isso mesmo. Posso até concordar que o Tratado de Lisboa, assinado em Dezembro de 2007 é mau, bem como os anteriores Tratados de Maaastricht e de Nice são maus. Mas pior ainda seria não existirem tratados nenhuns porquanto deixaria a Europa entregue a um Directório de potências. É uma lei das relações internacionais e da ciência política que é preferível aos pequenos contratualizar o poder do que deixá-lo à solta em benefício dos grandes.

A condição para a Europa ter sucesso é não cair na dimensão de super estado uniformizado, em nome do despotismo esclarecido e utilizando processos de diplomacia confidencial e secretismo. Não é essa a missão europeia, como se vê pelas estruturas de governação europeia que são de estruturas de poliarquia e não de estado soberano. A Europa tem um órgão executivo e fonte de normas que se chama Comissão. Tem a Presidência que se chama Conselho e que funciona por consensos alargados. Tem um Parlamento, mas que não legisla. Só o Tribunal Europeu mantém as funções de justiça tradicionais em apelo de última instância.

Portugal é um país atlântico situado na Europa. Depara-se com a contradição de uma comunidade de destino que teve direito a uma democracia portuguesa que gerou o municipalismo, a participação popular em Cortes em 1254, o primeiro Estado pós-feudal da Europa em 1385 e a primeira aplicação revolucionária das teorias da soberania popular em 1640, a revolução liberal em 1820, aliás, muito ligada à independência do Brasil. O seu papel é contribuir para essa ideia de Europa como o universal que é um local sem muros.

Acesse a página de Mendo Castro Henriques aqui.

Um comentário:

Luis Miguel da Fonseca Barrocas disse...

Com efeito, a espiritualização do secular constitui uma das tarefas primordias a realizar nos dias de hoje. Voegelin, por meio de um realismo espiritual, introduz o factor da ordem simbólica, quer de uma reconstrução da identidade pessoal quer nacional.
Se Miguel Torga refere que o global é o local sem muros, poderíamos também dizer que o nacional é o individual sem preconceitos. Com efeito, o que Voegelin professa em sua filosofia é uma abertura da consciência do sujeito à realidade mas, porque sujeito, realizada por uma referência simbólica. Uma das causas talvez da "desordem actual" consiste no esquecimento de que o homem é um ser histórico que para se compreender a si e ao mundo não se pode quedar no concreto do quotidiano; necessita de um referencial existencial histórico-simbólico, como Voegelin revelou em suas obras.