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Agradeço as oportunas e coerentes intervenções dos comentaristas criticando o proselitismo irresponsável do globoritarismo apoiado pela mídia amestrada banalizando as Instituições e o Poder do Estado para a pratica sistemática de crimes. Os brasileiros de bem que pensam com suas próprias cabeças ja constataram que vivemos uma crise moral sem paralelo na historia que esgarça as Instituições pois os governantes não se posicionam na defesa da Lei e das Instituições gerando uma temerária INSEGURANÇA JURÍDICA. É DEVER de todo brasileiro de bem não se calar e bradar Levanta Brasil! Cidadania-Soberania-Moralidade

3.19.2009

CMRJ 63 PETIÇÃO 3.388-4 RORAIMA - VOTO-VISTA - MINISTRO MARCO AURÉLIO

PETIÇÃO 3.388-4 RORAIMA
RELATOR : MIN. CARLOS BRITTO
REQUERENTE(S) : AUGUSTO AFFONSO BOTELHO NETO
ADVOGADO(A/S) : CLÁUDIO VINÍCIUS NUNES QUADROS
ASSISTENTE(S) : FRANCISCO MOZARILDO DE MELO CAVALCANTI
ADVOGADO(A/S) : ANTONIO GLAUCIUS DE MORAIS E OUTROS
REQUERIDO(A/S) : UNIÃO
ADVOGADO(A/S) : ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO
VOTO-VISTA
O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO - Ação popular
ajuizada pelo Senador Augusto Affonso Botelho Neto em face da
União, pleiteando a declaração de nulidade da Portaria nº
534/2005 do Ministério da Justiça, homologada pelo Presidente da
República em 15 de abril de 2005, em que definidos os limites da
Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Sustenta, em síntese, que o
ato derivou de procedimento de demarcação viciado e ofende os
princípios da razoabilidade, proporcionalidade, segurança
jurídica, legalidade e devido processo legal.
A competência do Supremo foi fixada no julgamento
da Reclamação nº 2.833-0/RR, da relatoria do ministro Carlos
Ayres Britto. Na ocasião, com fundamento no artigo 102, inciso
I, alínea "f", da Constituição Federal, assentou-se caber a esta
Corte julgar as lides envolvendo a questão da nulidade do
processo demarcatório da Reserva Raposa Serra do Sol, presente o
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resguardo do patrimônio público do Estado de Roraima, tendo sido
cassadas liminares anteriormente formalizadas.
Em seguida, considerada a revogação da Portaria
nº 820/98 e a edição da Portaria nº 534/05, a competência veio a
ser novamente assentada. Confiram:
RECLAMAÇÃO. USURPAÇÃO DA COMPETÊNCIA. PROCESSOS
JUDICIAIS QUE IMPUGNAM A PORTARIA Nº 534/05, DO MINISTÉRIO
DA JUSTIÇA. ATO NORMATIVO QUE DEMARCOU A RESERVA INDÍGENA
DENOMINADA RAPOSA SERRA DO SOL, NO ESTADO DE RORAIMA.
Caso em que resta evidenciada a existência de
litígio federativo em gravidade suficiente para atrair a
competência desta Corte de Justiça (alínea "f" do inciso I
do art. 102 da Lei Maior). Cabe ao Supremo Tribunal Federal
processar e julgar ação popular em que os respectivos
autores, com pretensão de resguardar o patrimônio público
roraimense, postulam a declaração da invalidade da Portaria
nº 534/05, do Ministério da Justiça. Também incumbe a esta
colenda Corte apreciar todos os feitos processuais
intimamente relacionados com a demarcação da referida
reserva indígena. Reclamação procedente.
(Reclamação nº 3.331-7/RR, acórdão publicado no
Diário da Justiça de 17 de novembro de 2006)
O Tribunal, em 9 de abril de 2008, apreciando
pedido de liminar na Ação Cautelar nº 2.009-3/RR, suspendeu as
operações policiais cujo objetivo fosse a retirada dos
brasileiros não-índios da parte da reserva indígena Raposa Serra
do Sol ainda ocupada por eles.
A) DOS ATOS IMPUGNADOS
Segundo a inicial, em 11 de dezembro de 1998, o
Ministro da Justiça editou a Portaria nº 820, com o propósito de
declarar os limites da terra indígena situada na área denominada
Raposa Serra do Sol, determinando a demarcação, nos termos do
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artigo 2º, § 10, inciso I, do Decreto nº 1.775, de 8 de janeiro
de 1996.
A referida Portaria acabou substituída pela de nº
534, de 13 de abril de 2005, posteriormente homologada por
Decreto de 15 de abril de 2005. Eis os principais dispositivos
do ato (folha 26 a 28):
PORTARIA Nº 534, DE 13 DE ABRIL DE 2005
O MINISTRO DE ESTADO DA JUSTIÇA, no uso de suas
atribuições, observando o disposto no Decreto nº 1.775, de
8 de janeiro de 1996, e com o objetivo de definir os
limites da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, e
Considerando que a Portaria MJ nº 820/98 não
contempla solução para questões de fato controvertidas
ressalvadas no Despacho nº 50, de 10 de dezembro de 1998,
do então Ministro da Justiça;
Considerando ser conveniente e oportuno
solucionar, de modo pacífico, situações de fato
controvertidas ressalvadas no referido Despacho nº 50;
Considerando que os atos praticados com fundamento
na Portaria MJ nº 820, de 11 de dezembro de 1998, são
válidos e devem ser aproveitados;
Considerando que o Parque Nacional do Monte
Roraima pode ser submetido, por decreto presidencial, a
regime jurídico de dupla afetação, como bem público da
União destinado à preservação do meio ambiente e à
realização dos direitos constitucionais dos índios que ali
vivem;
Considerando que o Decreto nº 4.412, de 7 de
outubro de 2002, assegura a ação das Forças Armadas, para
defesa do território e da soberania nacionais, e do
Departamento de Polícia Federal, para garantir a segurança,
a ordem pública e a proteção dos direitos constitucionais
dos índios, na faixa de fronteira, onde se situa a Terra
Indígena Raposa Serra do Sol;
Considerando, por fim, o imperativo de harmonizar
os direitos constitucionais dos índios, as condições
indispensáveis para a defesa do território e da soberania
nacionais, a preservação do meio ambiente, a proteção da
diversidade étnica e cultural e o princípio federativo;
resolve:
Art. 1º Ratificar, com as ressalvas contidas
nesta Portaria, a declaração de posse permanente dos grupos
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indígenas Ingarikó, Makuxi, Taurepang e Wapixana sobre a
Terra Indígena denominada Raposa Serra do Sol.
Art. 2º A Terra Indígena Raposa Serra do Sol, com
superfície de um milhão, setecentos e quarenta e três mil,
oitenta e nove hectares, vinte e oito ares e cinco
centiares e perímetro de novecentos e cinqüenta e sete mil,
trezentos e noventa e nove metros e treze centímetros,
situada nos Municípios de Normandia, Pacaraima e Uiramutã,
Estado de Roraima, está circunscrita aos seguintes limites:
[...]
Art. 3º A terra indígena de que trata esta
Portaria, situada na faixa de fronteira, submete-se ao
disposto no art. 20, § 2º, da Constituição.
Art. 4º Ficam excluídos da área da Terra Indígena
Raposa Serra do Sol:
I - a área do 6º Pelotão Especial de Fronteira (6º
PEF), no Município de Uiramutã, Estado de Roraima;
II - os equipamentos e instalações públicos
federais e estaduais atualmente existentes;
III - o núcleo urbano atualmente existente da sede
do Município de Uiramutã, no Estado de Roraima;
IV - as linhas de transmissão de energia elétrica;
e
V - os leitos das rodovias públicas federais e
estaduais atualmente existentes.
Art. 5º É proibido o ingresso, o trânsito e a
permanência de pessoas ou grupos de não-índios dentro do
perímetro ora especificado, ressalvadas a presença e a ação
de autoridades federais, bem como a de particulares
especialmente autorizados, desde que sua atividade não seja
nociva, inconveniente ou danosa à vida, aos bens e ao
processo de assistência aos índios.
Parágrafo único. A extrusão dos ocupantes nãoíndios
presentes na área da Terra Indígena Raposa Serra do
Sol será realizada em prazo razoável, não superior a um
ano, a partir da data de homologação da demarcação
administrativa por decreto presidencial.
Art. 6º Esta Portaria entra em vigor na data de
sua publicação.
B) DOS VÍCIOS PROCESSUAIS DA AÇÃO POPULAR NO
ÂMBITO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
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Inicialmente, faz-se necessário trazer ao
conhecimento deste Plenário questões de ordem pública relativas
ao trâmite da ação popular. Considero tais questões de extrema
relevância, sendo inclusive uma das razões pelas quais formulei
o pedido antecipado de vista, frustrado ante o fato de os
integrantes que votam normalmente anteriormente a mim não terem
consentido, anunciando o convencimento a respeito do momentoso
tema e quebrando, com isso, uma tradição do Tribunal: em face de
pedido antecipado de vista, aguardarem, para votar, os demais.
Antes de tudo, repito o que já frisei em outras
ocasiões: o Supremo tem a guarda da Constituição e não pode
despedir-se desse dever, imposto de forma expressa pelo
Constituinte de 1988, sob pena de a história cobrar-lhe as
consequências da omissão, de comprometimento da própria
credibilidade. No sempre oportuno dizer do ministro Néri da
Silveira, o Supremo é órgão da República, última trincheira do
cidadão, comprometido com os princípios caros a Estado que se
diga organizado, a Estado de Direito, responsável, enfim, pela
palavra final sobre conflitos de interesses que se lhe
apresentam para julgamento. Eis a melhor síntese sobre o
primordial papel do Tribunal. Paga-se um preço por se viver em
uma democracia e ele não é exorbitante, mas módico, encontrandose
ao alcance de todos os homens de boa vontade. Implica apenas
o respeito irrestrito ao arcabouço normativo.
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DA NECESSIDADE DE CITAÇÃO DAS AUTORIDADES QUE
EDITARAM A PORTARIA Nº 534/2005 E O DECRETO HOMOLOGATÓRIO
Inicialmente, cumpre verificar o que apontado no
memorial distribuído pelo ex-ministro Maurício Corrêa:
Cuida-se de ação popular cujo objeto é a anulação
da Portaria nº 534/2005 do Ministério da Justiça, que
promoveu a demarcação da reserva indígena Raposa Serra do
Sol, em Roraima. Permita apresentar algumas considerações
sobre o tema.
2. Na linha do que foi suscitado pelo ilustre
Advogado-Geral da União em sua sustentação oral, cumpre
chamar a atenção, de início, para a inadequada composição
do pólo passivo da demanda. Na forma do artigo 6º da Lei
nº 4.717/65 c/c 47 do CPC, a ação popular será proposta
contra a pessoa jurídica de direito público e as
autoridades que houverem praticado o ato.
3. Entretanto, apenas a União foi intimada a
contestar a ação, faltando integrar a lide o senhor
Márcio Thomaz Bastos, ministro da Justiça que editou a
Portaria, e o senhor Luiz Inácio Lula da Silva,
presidente da República que, com aquele, assinou o
decreto homologatório respectivo.
4. Trata-se de litisconsórcio passivo necessário
legal cuja formação é pressuposto de validade da relação
processual. Por revelar matéria de ordem pública, afeta
às condições da ação, pode ser deduzida até mesmo de
ofício e em qualquer fase processual.
Sim, acertado é o argumento. De acordo com o
artigo 6º da Lei nº 4.717/65, "a ação será proposta contra as
pessoas públicas ou privadas e as entidades referidas no art.
1º, contra as autoridades, funcionários ou administradores que
houverem autorizado, aprovado, ratificado ou praticado o ato
impugnado, ou que, por omissas, tiverem dado oportunidade à
lesão, e contra os beneficiários diretos do mesmo."
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Pelo que consta do sítio do Supremo, o que
confirmei no exame do processo, as partes da presente ação são
as seguintes:
PARTES
Categoria Nome
REQTE.(S) AUGUSTO AFFONSO BOTELHO NETO
ADV.(A/S) CLÁUDIO VINÍCIUS NUNES QUADROS
ASSIST.(S) FRANCISCO MOZARILDO DE MELO CAVALCANTI
ADV.(A/S) ANTONIO GLAUCIUS DE MORAIS
REQDO.(A/S) UNIÃO
ADV.(A/S) ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO
Com efeito, é incontroverso ser múltipla, no
âmbito da ação popular, a legitimação passiva, formando-se
litisconsórcio necessário composto: (a) pelas pessoas cujo
patrimônio se pretende proteger; (b) por aqueles que se diz
haverem causado a lesão aos bens tutelados: autoridades
públicas, funcionários, entre outros; e (c) pelos beneficiários
diretos do ato ou da omissão.
Colho trecho do voto proferido pelo ministro
Carlos Madeira – maranhense a quem sucedi nesta cadeira - no
Recurso Extraordinário nº 116.750-5/DF, em que abordado o tema:
[...] As autoridades a que faz menção o artigo 6º
da Lei 4.717 são quaisquer autoridades – legislativas,
inclusive – e têm de ser citadas; quanto a isso, não há
dúvida (RDA 85/399).
José Afonso da Silva também sustenta que a lei não
discrimina. "Qualquer autoridade, portanto – diz ele –
que houver participado do ato impugnado – autorizando-o,
aprovando-o, ratificando-o ou praticando-o – deverá ser
citada para a demanda popular, que vise anulá-lo. Assim,
desde as autoridades mais elevadas até as de menor
gabarito estão sujeitas a figurarem como rés no processo
da ação popular. Nem mesmo o Presidente da República, ou
o do Supremo Tribunal Federal, ou do Congresso Nacional
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está imune de ser réu, nesse processo" (Ação Popular
Constitucional, 1968, p. 197).
Trago a lição de Hely Lopes Meirelles, em obra
atualizada pelo Professor Arnoldo Wald e pelo Presidente da
Corte, ministro Gilmar Mendes1:
[...] Deverão ser citadas para a ação,
obrigatoriamente, as pessoas jurídicas, públicas ou
privadas, em nome das quais foi praticado o ato a ser
anulado e mais as autoridades, funcionários ou
administradores que houverem autorizado, aprovado,
ratificado ou praticado pessoalmente o ato ou firmado o
contrato impugnado, ou que, por omissos, tiverem dado
oportunidade à lesão, como também os beneficiários
diretos do mesmo ato ou contrato (art. 6º). [...]
Em qualquer caso, a ação deverá ser dirigida
contra a entidade lesada, os autores e participantes do
ato e os beneficiários do ato ou contrato lesivo ao
patrimônio público. É o que se infere do disposto no art.
6º, § 2º.
[...]
Faz relevante verificar a redação dos artigos 6º
e 7º da Lei nº 4.717/65 e 47 do Código de Processo Civil:
Art. 6º. [...] A ação será proposta contra as
pessoas públicas ou privadas e as entidades referidas no
Artigo 1º, contra as autoridades, funcionários ou
administradores que houverem autorizado, aprovado,
ratificado ou praticado o ato impugnado, ou que, por
omissas, tiverem dado oportunidade à lesão e contra os
beneficiários diretos do mesmo.
Art. 7º. A ação obedecerá ao procedimento
ordinário, previsto no Código do Processo Civil,
observadas as seguintes normas modificativas:
[...]
§ 2º [...]
[...]
1 MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de Segurança. 30ª edição, atualizada
por Arnoldo Wald e Gilmar
Ferreira Mendes. São Paulo: Malheiros. p. 135.
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III - Qualquer pessoa, beneficiada ou responsável
pelo ato impugnado, cuja existência ou identidade se
torne conhecida no curso do processo e antes de proferida
a sentença final de primeira instância, deverá ser citada
para a integração do contraditório, sendo-lhe restituído
o prazo para contestação e produção de provas. Salvo
quanto a beneficiário, se a citação se houver feito na
forma do inciso anterior;
.........................................................
Art. 47. Há litisconsórcio necessário, quando, por
disposição de lei ou pela natureza da relação jurídica, o
juiz tiver de decidir a lide de modo uniforme para todas
as partes; caso em que a eficácia da sentença dependerá
da citação de todos os litisconsortes no processo.
Parágrafo único. O juiz ordenará ao autor que
promova a citação de todos os litisconsortes necessários,
dentro do prazo que assinar, sob pena de declarar extinto
o processo.
A jurisprudência está sedimentada no sentido de
que se trata de litisconsórcio passivo necessário e a falta de
citação de qualquer servidor ou autoridade partícipes do ato ou
contrato impugnado é causa de nulidade do processo2.
Descabe entender que a citação de pessoa jurídica
central – a União – dispensa a das autoridades envolvidas na
prática do ato atacado, isso considerados os efeitos de uma
possível sentença condenatória – artigos 11 e 18 da Lei nº
4.717/65.
Então, cumpre já aqui sanear o processo, citandose
como réus desta ação popular o Ministro de Estado da Justiça
e Sua Excelência o Presidente da República.
2 Idem. Ibidem. Acórdãos citados: TJSC, ApC nº 01.001230-3, Rel. Des.
César Abreu, RT 796/392;
TJRJ, ApC nº 4.367/96, Rel. Des. Amaury Arruda de Souza, RF 364/360, e
TRF-4ª R. ApC nº
2001.70.00.000102-3-PR, Rel. Juiz Federal Carlos Eduardo Thompson Flores
Lenz, RePro 131/219.
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Continuo na abordagem de outros aspectos
instrumentais da maior relevância, consignando ser o processo
não a forma pela forma, mas liberdade em sentido maior, saber o
que pode acontecer na tramitação de uma causa, abrindo-se
oportunidade de defesa àqueles cujas situações jurídicas,
constituídas, legitimamente ou não, possam ser alcançadas por
ato coercitivo do Estado-Juiz.
O direito de defender-se é, antes de mais nada,
um direito natural, senão a mola-mestra do processo - o
contraditório -, reveladora de predicado da dignidade do homem,
fundamento que tenho como síntese dos demais previstos, também,
no artigo 1º da Carta Federal. Sem ele não é dado falar em
soberania, cidadania, valores sociais do trabalho e da livre
iniciativa e pluralismo político. Do homem para o homem há de
ser a tônica da vida pública, da vida gregária, a interpretação
inafastável do arcabouço normativo pátrio.
AUSÊNCIA DE CITAÇÃO DO ESTADO DE RORAIMA E DOS
MUNICÍPIOS DE UIRAMUTÃ, PACARAIMA E NORMANDIA – TRANSGRESSÃO DOS
ARTIGOS 1º E 6º DA LEI Nº 4.717/1965 - LEI DA AÇÃO POPULAR
O Estado de Roraima não foi citado para integrar
a lide. Tampouco o foram os Municípios de Uiramutã, Pacaraima e
Normandia, cujas áreas geográficas estão em jogo neste processo.
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O Tribunal já reconheceu a natureza singular da
substituição processual, conquanto o cidadão, em ação popular de
competência originária do Supremo, atue defendendo o interesse
de ente federado em face de ato lesivo praticado pela União.
Confiram a ementa do acórdão relativo à Reclamação nº 424-4/RJ,
relator ministro Sepúlveda Pertence, publicada no Diário da
Justiça de 6 de junho de 1996:
Ação popular: natureza da legitimação do cidadão
em nome próprio, mas na defesa do patrimônio público:
caso singular de substituição processual.
II. STF: competência: conflito entre a União e o
Estado: caracterização na ação popular em que os autores,
pretendendo agir no interesse de um Estado-membro,
postulam a anulação de decreto do Presidente da República
e, pois, de ato imputável à União.
No precedente, é certo, reconheceu a Corte a
desnecessidade de o ente público titular do patrimônio lesado
compor a relação processual, malgrado sujeito da lide,
considerada a substituição pelo autor popular.
Não posso, porém, compactuar com tal orientação.
A legitimação não se faz unilateral – do substituto processual –,
mas concorrente. O particular deve, sim, buscar, mediante ação
popular, a preservação da coisa pública, mas esse fato não
afasta a necessidade de, a todos os títulos, vir a Juízo a
pessoa jurídica de direito público a que a citada coisa pública
se faça vinculada. Não pode ser outra a conclusão: mostra-se
indispensável para a correta formação do processo que o ente
dito alcançado pelo ato lesivo apontado como nulo figure na
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relação subjetiva processual. Considerem o disposto nos artigos
1º e – mais uma vez - 6º da Lei nº 4.717/1965:
Art. 1º Qualquer cidadão será parte legítima para
pleitear a anulação ou a declaração de nulidade de atos
lesivos ao patrimônio da União, do Distrito Federal, dos
Estados e dos Municípios, de entidades autárquicas, de
sociedades de economia mista (Constituição art. 141, §
38), de sociedades mútuas de seguro nas quais a União
representa os segurados ausentes, de empresas públicas,
de serviços sociais autônomos, de instituições ou
fundações para cuja criação ou custeio o tesouro público
haja concorrido ou concorra com mais de 50% (cinqüenta
por cento) do patrimônio ou da receita ânua de empresas
incorporadas ao patrimônio da União, do Distrito Federal,
dos Estados e dos Municípios e de quaisquer pessoas
jurídicas ou entidades subvencionadas pelos cofres
públicos.
[...]
Art. 6º. A ação será proposta contra as pessoas
públicas ou privadas e as entidades referidas no art. 1º,
contra as autoridades, funcionários ou administradores
que houverem autorizado, aprovado, ratificado ou
praticado o ato impugnado, ou que, por omissas, tiverem
dado oportunidade à lesão, e contra os beneficiários
diretos do mesmo.
Vejam que, na espécie, alega-se lesividade a
atingir o patrimônio do Estado de Roraima e dos Municípios de
Uiramutã, Normandia e Pacaraima, presente demarcação a acarretar
a premissa de as terras pertencerem à União. Reafirmo: argui-se
lesão, decorrente de ato praticado pela União, a interesse e
patrimônio daqueles entes. Resta claro, assim, que a ação
deveria ter sido proposta também contra as referidas Unidades da
Federação, onde está situado o patrimônio questionado, para que
ou defendessem o ato da União, ou assumissem o polo ativo e
pleiteassem, em reforço à posição do autor inicial, a nulidade
respectiva.
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Tal conclusão encontra amparo na doutrina,
conforme já mencionado3:
Em qualquer caso, a ação deverá ser dirigida
contra a entidade lesada, os autores e participantes do
ato e os beneficiários do ato ou contrato lesivo ao
patrimônio público. É o que se infere do disposto no art.
6º, § 2º.
Esse enfoque é substancial considerado o fato de
o Estado apenas ter ingressado no processo - sendo admitido não
como parte, mas como assistente - depois de finda a instrução, a
fase probatória, e os Municípios jamais haverem composto a lide.
Eis a visão do relator, no voto proferido:
14. Dois dias depois (07.05.2008), foi a vez do
Estado de Roraima fazer idêntico movimento, na outra
ponta do processo (petição nº 64.182). Pelo que, ao cabo
de 120 (cento e vinte) laudas de minuciosa exposição e
escorado em abundantes cópias de documentos, aquela
unidade federativa também requereu "seu ingresso no
feito, na condição de autor, ante a existência de
litisconsórcio necessário..., possibilitando, assim, a
defesa de seu patrimônio (fls. 5.138/9.063, Volumes
20/36)." Defesa que animou o peticionário a fazer um
retrospecto de todos os atos e episódios que confluíram
para a demarcação, de forma contínua, da Terra Indígena
Raposa Serra do Sol. Tudo a compor um processo
administrativo que estaria crivado de nulidades formais e
materiais, já apontadas na inicial.
15. Não é só. O Estado roraimense houve por bem
agregar novos fundamentos à causa do autor popular e seu
assistente, assim resumidos: a) inconstitucionalidade do
Decreto nº 22/91; b) nulidade da ampliação da área
indígena cuja demarcação demandaria feitura de lei; c)
impossibilidade de superposição de terras indígenas e
parques nacionais; d) ofensa ao princípio da
proporcionalidade; e) necessidade de audiência do
Conselho de Defesa Nacional; f) impossibilidade de
desconstituição de Municípios e títulos de propriedade,
por simples decreto presidencial.
3 Idem. Ibidem.
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16. Nessa mesma toada de intermináveis dissensos é
que foram assentados novos pedidos, aplicáveis a
"qualquer demarcação de terras indígenas", a saber: a)
adoção da forma descontínua, ou em "ilhas"; b) a exclusão
das sedes dos Municípios de Uiramutã, Normandia e
Pacaraima; c) exclusão de imóveis com posse ou
propriedade anteriores a 1934 e de terras titulas pelo
INCRA antes de 1988; e) exclusão de rodovias estaduais e
federais, bem como de plantações de arroz, de áreas de
construção e inundação da Hidrelétrica de Contigo e do
Parque Nacional de Monte Roraima. Imprescindível anotar
que tais postulações fazem parte das causas de pedir do
autor, a exigir uma única solução jurídica: a nulidade da
portaria do Ministério da Justiça.
17. Por último, o Estado requereu a expedição de
ordem à União para que ela se abstivesse "de demarcar
qualquer outra área no território do Estado de Roraima, a
qualquer título, ou seja, indígena, ambiental, etc."
Ora, dessa maneira, a Unidade da Federação, não
teve os pleitos especificamente levados em conta, ante a
admissão na lide não como litisconsorte necessário, mas como
assistente. Colho esta conclusão do voto do relator, proferido
em questão de ordem que culminou na admissão do Estado:
28. Sem embargo, tenho que o pedido dos
retardatários é passível de acolhimento, desde que na
moldura menor da assistência, apanhando eles a causa no
estado em que ela se encontra. Logo, sem novos
fundamentos, pedidos inéditos, tentativas de reabertura
da instrução, sem prejuízo, é lógico, da análise das
questões de ordem pública trazidas por qualquer deles.
Até para evitar desnecessário alongamento do perfil
instrutório de uma causa que, torno a dizer, pela sua
patente repercussão político-social e elevada estatura
constitucional, está a exigir pronta resposta decisória
desta nossa Corte Maior de Justiça.
Assim também se pronunciou o ministro Menezes
Direito, em voto-vista - após análise, portanto, dos 51 volumes
a encerrarem este processo:
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Quanto ao Estado de Roraima, sua manifestação e
seus argumentos tampouco deixaram de ser observados no
processamento e vêm sendo apreciados no julgamento desta
ação. Como assistente não poderá, porém, formular outros
pedidos.
Ainda que se pudesse defender a inutilidade de o
Estado de Roraima figurar como litisconsorte necessário desde o
início da demanda e a pertinência da admissão como assistente –
enfoque cogitado apenas a título de argumentação -, é certo que
o interesse revela-se público e notório, observada a área
substancial em jogo – cerca de 7,79% do território estadual -,
tendo inclusive sido reconhecido pelo Plenário no julgamento da
Reclamação nº 3.331-7/RR, da relatoria do ministro Carlos Ayres
Britto – com acórdão publicado no Diário da Justiça de 17 de
novembro de 2006. Há expressa menção na ementa, confiram:
RECLAMAÇÃO. USURPAÇÃO DA COMPETÊNCIA. PROCESSOS
JUDICIAIS QUE IMPUGNAM A PORTARIA Nº 534/05, DO
MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. ATO NORMATIVO QUE DEMARCOU A
RESERVA INDÍGENA DENOMINADA RAPOSA SERRA DO SOL, NO
ESTADO DE RORAIMA. Caso em que resta evidenciada a
existência de litígio federativo em gravidade suficiente
para atrair a competência desta Corte de Justiça (alínea
"f" do inciso I do art. 102 da Lei Maior). Cabe ao
Supremo Tribunal Federal processar e julgar ação popular
em que os respectivos autores, com pretensão de
resguardar o patrimônio público roraimense, postulam a
declaração da invalidade da Portaria nº 534/05, do
Ministério da Justiça. Também incumbe a esta colenda
Corte apreciar todos os feitos processuais intimamente
relacionados com a demarcação da referida reserva
indígena. Reclamação procedente.
Para fins de registro, colho ainda trecho do voto
do relator:
9. No fluxo dessa compreensão das coisas, é de se
reconhecer que a impugnação da validade jurídica da
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citada Portaria nº 534/05, do Ministério da Justiça,
acarreta:
a) uma peculiar situação menoscabo da competência
constitucional que detém a União para efetuar os
procedimentos de demarcação das áreas indígenas (CF, art.
231);
b) lesão ao princípio da homogeneidade federativa,
este a significar a costura da conciliação possível de
interesses entre pessoas estatais que se dotam de
autonomia política.
Esta é mais uma matéria pendente de exame, a
merecer pronunciamento explícito do Tribunal. Antes, recordem a
origem da conclusão sobre a competência do Supremo nesse campo
da exceção revelado pela ação popular – a existência de um
considerável conflito federativo, vale dizer, um conflito entre
a União e uma unidade a compor a Federação, o Estado de Roraima,
presentes os Municípios atingidos em seus limites territoriais
pela demarcação verificada. Como, então, deixar de citá-los
para, até mesmo, figurarem na ação popular aderindo ao autor
como previsto no § 3º do artigo 6º da Lei nº 4.717/65. Salta aos
olhos a destinação, no campo das consequências e facilidades
processuais, em admiti-los como partes ou como assistentes,
apanhando o processo, neste último caso, no estágio em que se
encontrava, ou seja, quando já encerrada a instrução. A
organicidade instrumental está capenga, ferida de morte,
incidindo o paradoxo acima referido – a admissibilidade do
conflito federativo sem que formada a devida relação processual,
sem que, até aqui, o Estado, já não falo dos Municípios, figure
como parte propriamente dita.
Pet 3.388 / RR
17
Há de chamar-se o processo à ordem, reabrindo-se,
na extensão cabível, a instrução processual, sob pena de grassar
a balbúrdia, sob pena de, sem ouvirem-se as partes interessadas,
titulares de direitos, viabilizados os meios de prova visando a
revelá-los, ter-se, mesmo assim, sentença a elas oponível.
DA AUSÊNCIA DE INTERVENÇÃO OPORTUNA DO MINISTÉRIO
PÚBLICO NA INSTRUÇÃO DA AÇÃO POPULAR
Conforme a doutrina de Hely Lopes Meirelles, na
citada obra atualizada, "o Ministério Público tem posição
singular na ação popular: é parte pública autônoma incumbida de
velar pela regularidade do processo, de apressar a produção de
prova e de promover a responsabilidade civil ou criminal dos
culpados." 4
Assim, o Ministério Público deve ser intimado
pessoalmente, desde o nascedouro da ação, sob pena de nulidade5.
Eis o que preceitua o § 4º do artigo 6º da Lei nº 4.717/1965:
Art. 6º [...]
[...]
§ 4º O Ministério Público acompanhará a ação,
cabendo-lhe apressar a produção de provas e promover a
responsabilidade, civil ou criminal, dos que nela incidirem,
4 MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de Segurança. 30ª edição, atualizada
por Arnoldo Wald e Gilmar
Ferreira Mendes. São Paulo: Malheiros. p. 135-135. Nesse sentido ainda
RJTJESP 114/188.
5 Ação Popular. Revista de Processo, 32/163. Citado por RODRIGUES, Geisa
de Assis. Da Ação
Popular. Texto incluído na obra Ações Constitucionais. Organizada por
Fredie Didier Jr. Jus
Podivm: Rio de Janeiro. 2006. p. 242.
Pet 3.388 / RR
18
sendo-lhe vedado, em qualquer hipótese, assumir a defesa do ato
impugnado ou dos seus autores.
Vale conferir a lição de Geisa de Assis Rodrigues6
sobre o papel do Ministério Público na ação popular:
O que significa ter uma posição ativa em favor do
autor popular? Significa produzir as provas necessárias para a
demanda, fiscalizar o cumprimento das requisições judiciais de
certidões e informações, responsabilizar os que não atenderem aos
pleitos judiciais na ação popular, responsabilizar criminalmente
aqueles cujos delitos ficarem demonstrados no curso da ação
popular, recorrer das decisões que contrariarem o interesse
público, aditar a inicial, requerer a liminar de suspensão do ato
lesivo, requerer a antecipação de tutela, propor medida cautelar
incidental, não recorrer das decisões favoráveis ao cidadão, não
pleitear a suspensão da liminar concedida.
Mediante análise do processo, constato ter sido o
Ministério Público intimado a manifestar–se apenas à folha 388,
quando já finda a instrução processual. Em outras palavras, não
houve o acompanhamento da instrução probatória nem a abertura de
vista para eventual pedido de produção de provas.
Deve-se frisar o envolvimento de direito
indisponível. Tanto é assim que a lei impõe a participação do
Ministério Público com abrangência maior. Vale dizer: o fato de
não haver se insurgido contra a irregularidade, vindo a oficiar
de forma simplesmente opinativa, não convalida a situação
jurídica. Cumpre, então, sanear o processo, sob pena de desprezo
à ordem jurídica, à organicidade do Direito. Uma coisa é a
manifestação final ocorrida, silenciando o Ministério Público
quanto ao fato de não haver sido intimado para acompanhar a
6 Idem Ibidem.
Pet 3.388 / RR
19
totalidade da tramitação do processo requerendo o que entendesse
cabível, outra é olvidar os parâmetros que o compelem ao
abandono do campo do simples parecer.
Também aqui se verifica o desatendimento de
formalidade essencial, implicando a inobservância do devido
processo legal tão próprio à ação popular. Mais um defeito a ser
sanado.
AUSÊNCIA DE CITAÇÃO DAS ETNIAS INDÍGENAS
Nos termos do artigo 6º da Lei nº 4.717/1965, a
ação popular será proposta também contra os beneficiários
diretos do ato lesivo. Trata-se, da mesma maneira, de
litisconsórcio passivo necessário:
Sendo beneficiário, litisconsorte necessário do ato
de provimento que se pretende ineficacizar, é nulo, 'ab initio',
o processo em que não foi citado para o contraditório e defesa,
podendo essa nulidade ser postulada pelo Ministério Público (RSTJ
43/332)7.
É inegável serem as comunidades indígenas, de
início, beneficiárias do ato de demarcação. Tanto são que,
consoante o § 3º do artigo 2º do Decreto nº 1.775/1996, mostrase
necessária a participação do grupo indígena envolvido,
segundo as formas próprias, em todas as fases do processo de
demarcação:
7 Trecho de acórdão citado por Theotonio Negrão na obra Código de
Processo Civil e legislação
processual em vigor, 38ª ed. São Paulo: Saraiva. p. 1119.
Pet 3.388 / RR
20
§ 3° O grupo indígena envolvido, representado segundo
suas formas próprias, participará do procedimento em todas as
suas fases.
No curso do processo, as comunidades requereram o
ingresso na qualidade de litisconsortes. O Plenário, porém,
admitiu a intervenção apenas na condição de assistentes.
Confiram trecho do voto do ministro Menezes Direito:
No caso, e considerando que as comunidades indígenas
envolvidas, ainda que não citadas como rés, intervieram no
processo na qualidade de assistentes, produzindo provas e
manifestando-se com os múltiplos argumentos que souberam tão bem
apresentar, não se verifica nenhum prejuízo à sua defesa que
imponha a desconsideração de todo o processado até aqui.
[...]
Nessa linha, acompanhando o Relator, voto pelo
indeferimento dos requerimentos de integração na forma de
litisconsórcio necessário, mas defiro as manifestações de todos
na qualidade de assistentes. Diga-se que esse tema já ficou antes
assentado em questão preliminar na anterior assentada.
Pois bem, imaginem se a presente ação for julgada
procedente, anulando-se o processo demarcatório, não haverá
clara nulidade, considerada a ausência da participação dos
beneficiários, como litisconsortes? Não é porque o julgamento
caminha no sentido da improcedência do pedido que será afastada
a observância irrestrita das regras de direito processual, as
quais visam, em última análise, a proteger as partes, dando
credibilidade ao pronunciamento jurisdicional.
Ante o quadro, faz-se necessária a citação de
entidades representativas das cinco etnias existentes na reserva
Raposa Serra do Sol, sob pena de nulidade do processo.
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21
AUSÊNCIA DE PRODUÇÃO DE PROVAS
Convém apontar, da mesma forma, ter o relator,
por meio do despacho de folha 356, aberto vista às partes para
especificação de provas, no prazo de dez dias. Apenas se
manifestou a União, afirmando não ter nada a requerer a tal
título, preconizando o julgamento antecipado da lide (folha
361). Certidão acostada à folha 362 atesta o silêncio dos
autores populares.
Em seguida, à folha 363, o relator abriu vista às
partes para alegações finais. O autor popular e o assistente
Senador Mozarildo Cavalcanti, que já não haviam apresentado
réplica (folha 345), permaneceram silentes também nessa fase
processual (folha 388). Ou seja, até o fim da instrução e a
abertura do prazo para razões finais (certificada à folha 362 do
volume 2 de um processo que contém 51 volumes), as únicas peças
processuais trazidas pelos autores populares, defensores dos
interesses do Estado de Roraima e dos Municípios, foram a
petição inicial e o recurso de agravo dirigido contra decisão do
relator indeferindo medida liminar.
Noto estar a tese relativa à arguição da nulidade
do processo demarcatório, veiculada na inicial, assentada nas
conclusões de:
(a) laudo pericial produzido no âmbito da ação
popular ajuizada por Silvino Lopes da Silva e outros (Processo
nº 1999.42.00.000014-7), que tramitou perante a 1ª Vara da
Pet 3.388 / RR
22
Justiça Federal em Roraima, não chegando a ter o mérito
apreciado por perda de objeto;
(b) documento intitulado "Relatório Parcial da
Comissão Temporária Externa do Senado Federal sobre a Demarcação
de Terras Indígenas – Área Indígena Raposa/Serra do Sol".
Eis a conclusão dos peritos do Juízo (folha 6245,
volume 24):
O que restou provado com esta Perícia é que a
FUNAI apresentou e aprovou um relatório completamente
inadequado, incorreto, incompleto, e com vícios insanáveis,
para a demarcação da Área Indígena Raposa Serra do Sol,
induzindo o Ministro da Justiça ao erro em baixar a
Portaria 820/98.
Dessa maneira, mesmo diante de notícia segundo a
qual laudo pericial confeccionado a pedido do Juízo Federal de
Roraima atestara a existência de nulidades no processo
demarcatório, servindo de embasamento para os pedidos dos
autores populares, e relatório elaborado pelo Senado da
República revelara conclusões no mesmo sentido - e, cumpre
acrescentar, a Câmara dos Deputados também assim se pronunciou
em documento oficial -, constato não ter sido determinada, no
Supremo, a produção de prova pericial para averiguar as
nulidades alegadas.
A teor do artigo 130 do Código de Processo Civil,
mesmo diante da omissão das partes, compete ao juiz determinar
as provas necessárias para a adequada instrução do processo, o
Pet 3.388 / RR
23
que se dirá quando envolvida a coisa pública em extensão
inigualável:
Art. 130. Caberá ao juiz, de ofício ou a
requerimento da parte, determinar as provas necessárias à
instrução do processo, indeferindo as diligências inúteis
ou meramente protelatórias.
Trago a lição de Luiz Rodrigues Wambier e
Evaristo Aragão Santos, em que concluem não poder o exercício
dos poderes instrutórios ser considerado mera faculdade do órgão
judicante, mas um dever, ante a necessidade de conduzir o
procedimento da maneira mais idônea possível, sempre com o
intuito de obter a efetiva tutela do direito material8:
Existindo nos autos quaisquer elementos (dados em
geral ou, mesmo, indícios, enquanto fato provado) que
apontem de maneira objetiva (isto é, que não dependam da
avaliação subjetiva do juiz, mas surjam nos autos de
maneira perceptível a qualquer julgador) para
desdobramentos capazes de alterar o rumo do convencimento,
sua apuração é medida que se impõe ao órgão judicial. Mesmo
porque, não podemos esquecer, está no seu estrito âmbito de
atuação a avaliação das provas a partir de todos os "fatos
e circunstâncias constantes nos autos, ainda que não
alegados pelas partes" (CPC, art. 131).
Esses elementos muitas vezes são descritos como
formadores de uma situação de perplexidade do juiz diante
do material probatório formado nos autos. O problema é que
tal vocábulo acaba passando a impressão de que se trataria
de situação esdrúxula, aberrante mesmo e que, apenas assim,
autorizaria sua correção de ofício. Em nosso sentir, no
entanto, a existência desses elementos objetivos
inexplorados (ou desconsiderados) no contexto fático dos
autos até não deixa de ser gerador de alguma perplexidade.
No entanto, para tê-la por configurada (a tal
perplexidade), bastará que o julgador se veja "diante das
provas contraditórias confusas ou incompletas". Nada mais
exorbitante do que isso.
8 Trecho transcrito a partir de artigo redigido por Luiz Rodrigues
Wambier e Evaristo Aragão dos
Santos, denominado "Sobre o ponto de equilíbrio entre a atividade
instrutória e o ônus da parte
de provar", publicado na obra Os Poderes do Juiz e o Controle das
Decisões Judiciais. São Paulo:
Saraiva. 2008. p 162.
Pet 3.388 / RR
24
Esse poder do juiz apresenta-se diferenciado na
ação popular, nos termos da lição de Arruda Alvim, destacado o
papel ativo do juiz na produção de provas em demanda dessa
natureza:
Nesta lei, examinada a letra b, do art. 7, I,
verificamos serem bem amplos os poderes do Juiz. Pois, além
de solicitado na petição inicial, e, na defesa, o Juiz tem
poderes e outros que se lhe afigurem necessários ao
esclarecimento do fato. E temos o texto que outorga, em
nome do interesse público e da defesa do patrimônio
público, maiores poderes para o juiz, que aqui, no nosso
entender, pode agir com maior liberdade, diversamente do
que ocorre no CPC. Coloca-se o juiz numa postura mais
envergadamente inquisitória.9
É induvidosa a necessidade de produção da
perícia, prova essa que deveria ter sido determinada de ofício,
consideradas a omissão das partes, a falta de atuação do
Ministério Público bem como a notícia, na petição inicial, de
laudo pericial confeccionado a pedido do Juízo Federal de
Roraima e de documento oficial do Senado nos quais apontadas
nulidades no processo demarcatório.
No âmbito do Supremo e especificamente em relação
à demarcação da Reserva Raposa Serra do Sol, existe precedente
9 Ação Popular. Revista de Processo, 32/163. Citado por RODRIGUES, Geisa
de Assis. Da Ação
Popular. Texto incluído na obra Ações Constitucionais. Organizada por
Fredie Didier Jr. Jus
Podivm: Rio de Janeiro. 2006. p. 243-244.
Cita-se, ainda, o seguinte acórdão: Processual Civil. Ação Popular.
Requisição de Documentos. 1
– Na ação popular, ao contrário do procedimento do mandado de segurança,
cabe ao juiz requisitar
de ofício ou a requerimento do autor popular os documentos necessários à
comprovação dos fatos
alegados na inicial, independentemente de prova de recusa da repartição
pública ou da autoridade
que os detém. 2 – Recurso parcialmente provido. 3. Decisão que se
reforma em parte. (TRF – 1ª
Região, Agravo de Instrumento – 01250107, 1ª T., DJU: 20/03/1997, pg.
16314, Juiz Paluto
Ribeiro).
Pet 3.388 / RR
25
do Plenário, relatado pelo ministro Carlos Ayres Britto, em que
não se acolheu pedido formulado em mandado de segurança, ante a
inadequação da via eleita, assentando-se a necessidade de
dilação probatória para a delimitação de questões como o tamanho
das fazendas dos impetrantes, a data do ingresso deles nas
terras em causa, a ocupação pelos índios e o laudo
antropológico. Confiram:
MANDADO DE SEGURANÇA. HOMOLOGAÇÃO DO PROCEDIMENTO
ADMINISTRATIVO DE DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS RAPOSA SERRA DO
SOL. IMPRESTABILIDADE DO LAUDO ANTROPOLÓGICO. TERRAS
TRADICIONALMENTE OCUPADAS POR ÍNDIOS. DIREITO ADQUIRIDO À POSSE E
AO DOMÍNIO DAS TERRAS OCUPADAS IMEMORIALMENTE PELOS IMPETRANTES.
COMPETÊNCIA PARA A HOMOLOGAÇÃO. GARANTIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL
ADMINISTRATIVO. BOA-FÉ ADMINISTRATIVA. ACESSO À JUSTIÇA.
INADEQUAÇÃO DA VIA PROCESSUALMENTE ESTREITA DO MANDADO DE
SEGURANÇA. AUSÊNCIA DE DIREITO LÍQUIDO E CERTO.
A apreciação de questões como o tamanho das fazendas
dos impetrantes, a data do ingresso deles nas terras em causa, a
ocupação pelos índios e o laudo antropológico (realizado no bojo
do processo administrativo de demarcação), tudo isso é próprio
das vias ordinárias e de seus amplos espaços probatórios. [...]
(Mandado de Segurança nº 25.483-1/DF, relator ministro
Carlos Ayres Britto, Tribunal Pleno, Diário da Justiça de 14 de
setembro de 2007)
Abaixo, transcrevo trecho do voto condutor do
julgamento:
[...]
16. Com efeito, as alegações de que as terras ocupadas
pelos impetrantes estão cercadas por terras indígenas, mas lhe
são independentes; o Laudo Antropológico não se pautou pelo rigor
científico necessário; os impetrantes entraram na posse das
terras na ausência de índios, tudo isso é questão a ser discutida
nas ações ordinárias. Noutro modo de dizer as coisas, os
fundamentos da inicial que giram ao redor da extensão das
fazendas, do ingresso dos impetrantes nas terras, da ocupação
pelos índios e do laudo antropológico (realizado no bojo do
processo administrativo de demarcação) são próprios das vias
ordinárias e de seus amplos espaços probatórios.
17. Nesse mesmo ritmo argumentativo, tenho que a
alegação de que o procedimento de demarcação das Terras Indígenas
Raposa Serra do Sol ofende o direito adquirido às áreas possuídas
de boa-fé e com justo título também implica o olhar atento do
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26
exegeta para um quadro fático extremamente impreciso. Afinal,
fixar o perímetro das terras pleiteadas exige o ingresso num
vasto campo empírico. Campo, esse, timbrado por documentos,
laudos periciais, supostos títulos possessórios e testemunhas,
por exemplo. Sendo assim, naquilo que toca as questões até aqui
aventadas, não conheço da impetração, dada a evidente inadequação
da via eleita.
[...]
Em última análise, há clara contradição entre as
conclusões dos referidos julgados. No primeiro, o Tribunal
indeferiu a segurança assentando a necessidade de farta
instrução probatória na via ordinária para solução da
controvérsia e, na ação popular, seara própria, deixou de
determinar a produção de qualquer prova, seja pericial ou
testemunhal, apontando o tema como exclusivamente de Direito.
Assim não o é. Ao que tudo indica, o relator de ambos os
processos mudou de entendimento sem informar, ao menos de modo
explícito e a convencer, a razão. Mas soberano é o Plenário e
não qualquer dos integrantes por mais douto que seja.
Assentada de maneira definitiva a orientação do
Supremo no caso em exame - estando em jogo tema impregnado da
maior importância jurídica, econômica e social, presente a
determinação de imediata retirada de todos os cidadãos nãoíndios
das terras demarcadas, brasileiros ou não, tal como
consta no voto do relator -, a conclusão implicará, na prática,
a impossibilidade de os interessados terem apreciadas as
pretensões arguidas em outros processos, perdendo, sem serem
ouvidos, o direito ao uso de todas as ferramentas de prova.
Pet 3.388 / RR
27
Impõe-se a colheita de prova, inclusive a
testemunhal, sobretudo para identificar as razões pelas quais
somente a antropóloga Maria Guiomar de Melo subscreveu o laudo
antropológico, não havendo a anuência dos demais integrantes do
Grupo Técnico constituído. Também cumpre verificar se, de fato,
as pessoas nomeadas para compor o Grupo Técnico detinham, ou
não, conhecimento especializado.
Acresce ter o ministro Menezes Direito
solicitado, junto à FUNAI, a elaboração de um mapa, o qual
passou a constituir parte integrante do voto proferido, com a
indicação da área que os índios utilizariam para a subsistência.
Confiram:
Um mapa elaborado pela FUNAI a meu pedido, e que junto
a este voto, passando a constituir parte integrante do mesmo,
mostra claramente a área, com base em círculos de raio de 5km,
que, a partir de cada aldeia, os seus habitantes utilizariam para
a sua subsistência no sistema de coivara; anoto que se trata tão
somente do segundo círculo concêntrico na idéia do Ministro
Jobim, já suficiente para preencher a quase totalidade da terra
indígena.
Apesar de elogiar a postura do ministro Menezes
Direito, no que formulou pedido de vista - havendo os demais
ministros aguardado - pretendendo instruir o processo com
elemento probatório adicional a auxiliar no exame da
legitimidade das conclusões do processo de demarcação, olvidado,
até mesmo, o critério da oportunidade da prova, considero ser
necessária, ao menos, a intimação das partes para se
Pet 3.388 / RR
28
manifestarem sobre a prova produzida. Não pode a Corte, durante
o julgamento, determinar a produção e juntada de novas provas ao
processo, sem que as partes tenham o direito de se pronunciar.
Por fim, transcrevo trechos do voto do ministro
Nelson Jobim, em questão de ordem na Ação Cível Originária nº
312-1/BA, quando se requereu a autorização para promover
inspeção judicial na área sobre a qual se discute a natureza de
terra indígena (folha 12 do voto):
[...]
O reconhecimento e fixação de limites da afirmada
TERRA INDÍGENA são pressupostos para o juízo de procedência,
total ou parcial, desta ação.
Se for TERRA INDÍGENA, os títulos dos RÉUS serão nulos
nos estritos limites do que abrangerem aquela área.
Na parte que, eventualmente, não incluir TERRA
INDÍGENA, os títulos remanescem íntegros.
Assim, para se desconstituir os títulos, impõe-se o
prévio conhecimento, como limites precisos, da TERRA INDÍGENA.
Ser, ou não, TERRA INDÍGENA é premissa para o juízo
nulificante.
[...]
Sr. Presidente, como foi posto pelo eminente Ministro
Maurício Corrêa, tem-se que os atos físicos da década de 30, com
relação à demarcação da área indígena que havia sido autorizada
por uma lei estadual ao Governo do Estado da Bahia, foram
realizados, mas não se consumou a demarcação com o necessário
título de definição da área. À época, eram feitas escrituras
públicas do Estado à comunidade indígena ou ao Serviço de
Proteção ao Índio.
Em 1967, a Constituição passou o domínio das terras
tradicionalmente ocupadas pelos índios para a União, assegurando
aos índios o seu usufruto vitalício. A ação ajuizada pela FUNAI
visa a anular escrituras públicas, outorgadas pelo Estado da
Bahia, em relação àquelas terras, porque, em determinado momento,
o governador subseqüente abandonou a hipótese de transferi-las
aos índios e titulou várias pessoas.
Na verdade, com a lei estadual, o antigo Serviço de
Proteção ao Índio apropriou-se da área e passou a arrendá-la para
brancos, que a ocuparam. Depois, os governadores subseqüentes
foram titulando esses brancos e acabaram não demarcando a área.
A pergunta, posta por mim, na questão de ordem,
acompanhado pela Ministra Ellen Gracie e pelo Ministro Maurício
Corrêa, é esta: não tendo havido a demarcação, poderia a ação
continuar, uma vez que ela visa à anulação da escritura? A minha
Pet 3.388 / RR
29
conclusão é a de que as terras são demarcáveis porque são
indígenas, não passam a sê-lo após a demarcação. É possível,
portanto, que, por meio dos atos subseqüentes, o Tribunal possa
examinar se se constituem em área indígena para julgar
procedente, ou não, a ação. Este foi o sentido da questão de
ordem, que tem um aspecto prático.
Não gostaria de tomar providências complicadas no
sentido de eventual inspeção judicial para, depois, o processo
cair na preliminar. Então, gostaria de resolver a preliminar para
que o Ministro-Relator possa promover inspeções judiciais a fim
de definir a situação e trazer a julgamento a questão de mérito.
Mostra-se incontroverso que as terras
tradicionalmente ocupadas pelos índios são aquelas por eles
habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas
atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos
recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias
à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes
e tradições – artigo 231 da Constituição Federal –, cabendo-lhes
a posse permanente, tal como ressaltado nos votos já proferidos.
Então, o tema não é estritamente de Direito, mas de fato, a
exigir, ante variadas circunstâncias existentes, a abertura de
complexa dilação probatória, não fosse a alegação de vícios
considerada a peça reveladora da demarcação administrativa. A
propriedade da máxima segundo a qual sem fatos não há
julgamento, sendo que, até aqui, estes permanecem
controvertidos, surge manifesta. Há de definir-se, ficando
estreme de dúvidas, as terras realmente ocupadas - expressão da
Constituição - pelos indígenas no já um tanto quanto longínquo
ano de 1988, marco temporal para assentar-se a insubsistência de
títulos de propriedade e posses de terceiros, esclarecendo-se as
situações fáticas e jurídicas apanhadas pela Carta Federal.
Pet 3.388 / RR
30
AUSÊNCIA DE INTIMAÇÃO DOS DETENTORES DE TÍTULO DE
PROPRIEDADE – RELEVÂNCIA PARA A DEFINIÇÃO DE TODAS AS QUESTÕES
ENVOLVIDAS NA DEMARCAÇÃO
Outro ponto importante a ressaltar é a eventual
abrangência da coisa julgada – artigo 18 da Lei nº 4.717/65 -
considerados os detentores de títulos de propriedade na área
demarcada, presente a natureza da ação popular. Eis o que
consignou o ex-ministro Ilmar Galvão, em memorial apresentado em
favor de Lawrence Manly Harte e outros. Noto terem estes sido
admitidos como assistentes pelo Plenário, quando do julgamento
de questão de ordem, na sessão em que o relator proferiu o voto:
4. A participação, no feito, dos autores do
presente memorial
Sabidamente, o objeto da ação popular é o ato
lesivo ao patrimônio público ou de que o Estado
participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente
e ao patrimônio histórico e cultural. É o que se lê no
inciso LXXIII do artigo 5º da Constituição.
Em sendo assim, o requerimento de ingresso dos
autores do presente memorial na relação processual só
pode ser entendido como tendo tido objetivo de formarem
eles como parceiros e coadjuvantes dos autores da ação na
defesa do interesse do Estado de Roraima, sob os aspectos
comercial, econômico e social, secundado-lhe, por isso,
as alegações por eles expendidas na inicial. Não podiam
agir de outro modo, quando pacífico que a ação popular
não é meio idôneo para defesa de interesses individuais
particulares. Donde a ilação obrigatória de que,
eventuais alusões a interesses próprios, não foram feitas
senão em caráter obiter dictum, não configurando causa de
pedir.
De outra parte, a ação popular não é espécie de
actio duplex, em que autor, litisconsortes e assistentes,
podem sair tosquiados, como acontecerá neste caso com os
Pet 3.388 / RR
31
ora Requerentes, acaso prevaleça o voto sob enfoque, na
parte em que declarou nulos os seus títulos de domínio e
de posse.
É certo que a Constituição, no § 6º do art. 231,
declara nulos os atos que tenham por objeto a ocupação, o
domínio e a posse das terras indígenas da CF; e não menos
certo que, na conformidade do disposto no art. 168,
parágrafo único, as nulidades devem ser pronunciadas pelo
juiz quando conhecer do negócio jurídico ou dos seus
efeitos, mas tão-somente quando as encontrar provadas.
Ora, inexistindo dúvida de que os ora Requerentes
não poderiam utilizar-se da ação popular para defesa de
seus próprios interesses, parece óbvio, por igual, que
não poderão ter seus interesses nela apreciados julgados,
donde a conclusão inarredável de que o voto sob enfoque
não poderá prevalecer, data vênia, na parte em que
laborou extra petita.
Na verdade, para defesa de seus interesses como
senhores de terras que a Constituição de 88 encontrou
isentas da presença de índios, os autores do presente
memorial ajuizaram as competentes ações perante o MM.
Juízo da Seção Judiciária de Roraima, de onde, como já
dito, foram avocadas por arrasto para essa Excelsa Corte,
onde se acham paralisadas, depois da cassação da medida
liminar de manutenção de posse deferida pelo MM. Juiz
Federal de Roraima.
É no bojo de tais ações que deverão eles produzir
a exuberante prova que têm em mãos, de que não ocupam
porções de terra encravadas em área indígena, mas
situadas fora de seus limites, ao sul e sudoeste. Essa
prova, repita-se, pelas razões expostas, não poderia ter
sido produzida no âmbito da ação popular, onde foi
invocada tão-somente a título de ilustração.
Decisão que conclua em sentido contrário a esse
entendimento, data venia, além de ofensiva ao princípio
da vedação do julgamento extra petita, não poderá
produzir efeito da coisa julgada oponível aos ora
requerentes, justamente pela circunstância apontada, de
não terem tido a oportunidade de oferecer a prova de seu
direito, que não poderia ser alegado senão nas ditas
ações, previstas em nosso sistema jurídico-processual, já
anteriormente ajuizadas.
II. O PEDIDO
Em face de todo o exposto, esperam os Requerentes
que Vossa Excelência se digne de julgar a ação
procedente, ou, na hipótese de acompanhar, em sua
conclusão, o voto do eminente Relator, se digne de deixar
ressalvado que a decisão proferida não valerá como coisa
julgada, para efeito de prejudicar as ações individuais
já propostas e as cujo ajuizamento pelos ora requerentes,
venha tornar-se necessário.
Pet 3.388 / RR
32
Faz-se necessário trazer à balha o que constou na
parte dispositiva do voto do ministro Carlos Ayres Britto,
proferido quando do exame da Reclamação nº 3.331-7/RR pelo
Plenário, em que fixada a competência originária do Supremo para
o julgamento das ações envolvendo o conflito Raposa Serra do
Sol:
14. Com esses fundamentos, voto pela procedência
desta reclamação para o fim de reconhecer:
a) a competência desta Corte Suprema quanto ao
processo e julgamento dos seguintes feitos: Ação Popular nº
2005.42.00.000724-2, Ação Civil Pública nº 2005.42.00.000139-2 e
Ações Possessórias nºs 2005.42.00.001094-0, 2005.42.00.001095-3,
2006.42.00.000098-7, 2006.42.00.000737-0, 2006.42.00.000739-7 e
2006.42.00.000757-5;
b) a competência desta Suprema Corte para processar e
julgar as Ações Possessórias nºs 2004.42.00.002115-0,
2004.42.00.001403-5, 2004.42.00.001459-0, 2004.42.00.001462-8,
2004.42.00.01591-4, 2004.42.00.001590-0, porquanto originárias da
Ação Popular nº 9994200000014-7.
15. Voto, por derradeiro, pela prejudicialidade dos
agravos regimentais interpostos no bojo desta reclamatória.
Conforme levantamento, de todos os processos
mencionados, apenas o de número 2004.42.00.001459-0, autuado no
Supremo como Petição nº 3.713, já foi apreciado, tendo sido
assentada a perda de objeto.
Em outras palavras, aguardam análise no Supremo
várias ações questionando o procedimento demarcatório, nas quais
aduzidos os mais diversos enfoques. Não restam dúvidas, porém,
de que a conclusão adotada na presente ação norteará a atuação
da Corte nas demais. Proclamando-se a valia da demarcação que se
diz viciada, praticamente ficará frustrada a apreciação das
Pet 3.388 / RR
33
causas de pedir arguidas e dos pedidos formulados nas outras
demandas. Isso é tão certo que, na parte dispositiva do voto do
relator, como já mencionado, noticia-se a revogação da liminar
deferida na Ação Cautelar nº 2.009-3/RR bem como a imediata
retirada de todos os indivíduos não-índios das terras em
disputa10. Além disso, sem o necessário exame individualizado,
viabilizado à exaustão o exercício do direito de defesa,
declara-se a nulidade dos títulos de propriedade. Tudo isso,
repito, sem a oitiva dos interessados. Tudo isso, volto a
frisar, em uma ação que tem como objeto apenas anular ato lesivo
ao patrimônio público e não possui natureza dúplice, como, por
exemplo, a ação consignatória ou a possessória. Indago: à
decisão será conferida extensão maior ou se ficará na simples
improcedência do pedido inicial, deixando-se de determinar, no
campo constitutivo negativo, providências das mais variadas
matizes?
E mais, no relatório da Câmara dos Deputados
(folha 6562) – notícia confirmada no Despacho nº 80, de 20 de
dezembro de 1996, posteriormente revogado, do então Ministro da
Justiça Nelson Jobim -, encontra-se consignado estarem
incluídas, na área da reserva, fazenda cujo domínio foi
assegurado em sentença judicial já preclusa na via da
10 Transcrevo trecho do voto do relator: ... II – marco da
tradicionalidade da ocupação. [...] O
termo "originários" a traduzir uma situação jurídico-subjetiva mais
antiga do que qualquer
outra, de maneira a preponderar sobre eventuais escrituras públicas ou
títulos de legitimação de
posse em favor de não-índios.
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recorribilidade. Ora, a ação popular tem o condão de
simplesmente rescindir aquele julgado?
A ciência dos interessados para manifestarem-se
quanto ao interesse, ou não, na demanda, possibilitando-lhes
participar da instrução probatória, deveria ter sido determinada
de ofício, considerada a singularidade do pronunciamento do
Supremo. É a figura da intervenção iussu iudicis expressamente
prevista no artigo 91 do Código de Processo Civil de 1939, já
admitida pela doutrina e por este Tribunal, e que se encontra
presente nos artigos 47, parágrafo único, 48 e 49 do Código
Buzaid – o de 1973:
Art. 91. O juiz, quando necessário, ordenará a
citação de terceiros, para integrarem a contestação. Se a parte
interessada não promover a citação no prazo marcado, o juiz
absolverá o réu da instância.
.................................................................
Art. 47. Há litisconsórcio necessário, quando, por
disposição de lei ou pela natureza da relação jurídica, o juiz
tiver de decidir a lide de modo uniforme para todas as partes;
caso em que a eficácia da sentença dependerá da citação de todos
os litisconsortes no processo.
Parágrafo único. O juiz ordenará ao autor que promova
a citação de todos os litisconsortes necessários, dentro do prazo
que assinar, sob pena de declarar extinto o processo.
Art. 48. Salvo disposição em contrário, os
litisconsortes serão considerados, em suas relações com a parte
adversa, como litigantes distintos; os atos e as omissões de um
não prejudicarão nem beneficiarão os outros.
Art. 49. Cada litisconsorte tem o direito de promover
o andamento do processo e todos devem ser intimados dos
respectivos atos.
Pet 3.388 / RR
35
Sobre o tema, transcrevo ensinamento de Moacyr
Lobo da Costa11:
Quando, em razão da conexidade substancial, o juiz
julgar oportuna a presença do terceiro no processo, poderá
determinar a sua intervenção, com o objetivo de tutelar o seu
interesse e obstar a possibilidade de decisões contraditórias em
ação futura.
Considera-se ter o ministro Celso de Mello
utilizado esse instituto quando, de ofício, na instrução do
Mandado de Segurança nº 24.831-9/DF, determinou a notificação
dos Líderes do Bloco de Apoio ao Governo, do PMDB e do PPS para
prestarem informações. O ministro fundamentou tal postura
consignando buscar o ato afastar objeções de ordem formal que
pudessem, eventualmente, inviabilizar o conhecimento da ação de
mandado de segurança, frustrando-se a definição pelo Supremo,
naquele processo, de um tema da maior importância jurídicoinstitucional,
qual seja, o direito das minorias legislativas à
investigação parlamentar, à luz do princípio democrático. Assim
como ocorre agora, a matéria se apresentava de extrema
relevância, tendo o Tribunal, alfim, assegurado os direitos da
minoria parlamentar de ver constituída, organizada e em
funcionamento comissão parlamentar de inquérito.
A admissão como assistentes, após a conclusão da
instrução, não supre a necessidade de se assegurar o devido
11 COSTA, MOACYR LÔBO. A Intervenção Iussu Iudicis no Processo Civil
Brasileiro. São Paulo:
Saraiva. 1961. p. 157.
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processo legal, com as ferramentas a ele inerentes, também aos
interessados.
Então, cumpre sanear o processo, providenciandose:
a) a citação das autoridades que editaram a
Portaria nº 534/05 e o Decreto que a homologou;
b) a citação do Estado de Roraima e dos
Municípios de Uiramutã, Pacaraima e Normandia;
c) a intimação do Ministério Público para
acompanhar, desde o início, o processo;
d) a citação de todas as etnias indígenas
interessadas;
e) a produção de prova pericial e testemunhal;
f) a citação dos detentores de títulos de
propriedade consideradas frações da área envolvida, em especial
dos autores de ações em curso no Supremo.
Que o Colegiado não silencie sobre essas
matérias!
C) DAS CAUSAS DE PEDIR ARROLADAS NA INICIAL DA
AÇÃO POPULAR
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
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37
Cabe ter em mente estar, para a doutrina
constitucional, entre os princípios de interpretação da Carta, o
da eficácia integradora. Eis o ensinamento de José Joaquim Gomes
Canotilho quanto ao tema12:
Ainda muitas vezes associado ao princípio da
unidade e na sua formulação mais simples significa
precisamente isto: na resolução dos problemas jurídicocientíficos
deve dar-se primazia aos critérios ou pontos de
vista que favoreçam a integração política e social e o
reforço da unidade política. Como tópico argumentativo, o
princípio do efeito integrador não assenta numa concepção
integracionista de Estado e da sociedade (conducente a
reducionismos, autoritarismo e transpersonalismos
políticos), antes arranca da conflitualidade
constitucionalmente racionalizada para conduzir a soluções
pluralistas (antagonicamente) integradoras.
Atentem para a íntegra dos principais
dispositivos constitucionais que tratam da proteção aos índios:
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua
organização social, costumes, línguas, crenças e tradições,
e os direitos originários sobre as terras que
tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las,
proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
§ 1º - São terras tradicionalmente ocupadas pelos
índios as por eles habitadas em caráter permanente, as
utilizadas para suas atividades produtivas, as
imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais
necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua
reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e
tradições.
§ 2º - As terras tradicionalmente ocupadas pelos
índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o
usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos
lagos nelas existentes.
§ 3º - O aproveitamento dos recursos hídricos,
incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra
das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser
efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas
as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada
participação nos resultados da lavra, na forma da lei.
12 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 4ª ed.
Coimbra: Almedina. p. 162.
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38
§ 4º - As terras de que trata este artigo são
inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas,
imprescritíveis.
§ 5º - É vedada a remoção dos grupos indígenas de
suas terras, salvo, "ad referendum" do Congresso Nacional,
em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua
população, ou no interesse da soberania do País, após
deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer
hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco.
§ 6º - São nulos e extintos, não produzindo
efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a
ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere
este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo,
dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante
interesse público da União, segundo o que dispuser lei
complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a
indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da
lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boafé.
Vale, ainda, transcrever o § 2º do artigo 20 do
Diploma Maior:
Art. 20.
[...]
§ 2º A faixa de até cento e cinqüenta quilômetros
de largura, ao longo das fronteiras terrestres, designada
como faixa de fronteira, é considerada fundamental para
defesa do território nacional, e sua ocupação e utilização
serão reguladas em lei.
É certa a necessidade de interpretação dos
dispositivos que conferem proteção aos índios em conjunto com os
demais princípios e regras constitucionais, de maneira a
favorecer a integração social e a unidade política em todo o
território brasileiro. O convívio harmônico dos homens, mesmo
ante raças diferentes, presente a natural miscigenação, tem
sido, no Brasil, responsável pela inexistência de ambiente
belicoso.
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Na obra Teoria do Estado, em capítulo intitulado
"A crise da integridade do Estado: A 'Mexicanização' da Amazônia
e o Assalto à Soberania", Paulo Bonavides traça comparação
analógica entre a situação do Brasil contemporâneo com a do
México no século XIX, em que tal país perdeu grande parte do
original território para os Estados Unidos. Reproduzo trecho de
capítulo em que se aborda a questão indígena13:
[...]
8. O assalto à soberania e a ocupação dissimulada
da Amazônia, acobertada pela proteção das reservas
indígenas
Hoje nos países em desenvolvimento desconfia-se de
que camufladamente grande parte daquelas sociedades não
governamentais e missões religiosas desempenham a mesma
função do vilipêndio; na rota da ocupação fingem-se de zelo
sacerdotal pela causa indígena ou se credenciam como
cientistas do solo, da fauna e da flora. São a ponta de
lança da invasão futura. Buscam desse modo conhecer melhor
nossas riquezas com o propósito de arrebatá-las depois,
consoante já o fizeram nos casos do México e da Colômbia,
vítimas da maior tragédia imperialista dos últimos cento e
cinqüenta anos na América Latina.
Não é sem razão que a demarcação das reservas
indígenas, ocorrendo mediante sub-reptícia pressão
internacional, em verdade não correspondente aos interesses
do nosso índio, mas aos desígnios predatórios da cobiça
imperialista, empenhada já na ocupação dissimulada do
espaço amazônico e na preparação e proclamação da
independência das tribos indígenas como nações encravadas
em nosso próprio território, do qual se desmembrariam. Essa
demarcação desde muito deixou de ser uma questão de
proteção ao silvícola para se converter numa grave ameaça à
integridade nacional.
A esse respeito o mais alarmante vem dos Estados
Unidos onde, na Câmara dos Representantes, se legisla já,
com ambigüidades, sobre a proteção dos povos indígenas do
Terceiro Mundo.
Com efeito, em 22 de março de 1991, o deputado
Benjamin A. Gilman, de Nova York, apresentou àquela Casa um
13 BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado. 6ª Ed. São Paulo: Malheiros.
p.392-393.
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projeto legislativo que oficialmente se intitula "lei para
proteger os povos indígenas do mundo inteiro."
Só o título vale para demonstrar a sem-cerimônia,
a arrogância e a falta de autoridade com que esse
parlamentar estrangeiro, deslembrado do extermínio de seus
moicanos e peles-vermelhas, intenta invadir na questão
indígena a competência dos parlamentos das nações em
desenvolvimento ou subdesenvolvidas.
O [O projeto de lei para proteção das populações
indígenas internacionais de 1991] "International
Indigenous Peoples Protection Act of 1991" tramita por
distintas comissões daquela Câmara e determina ao
Secretário de Estado e ao Diretor da Agência Internacional
para o Desenvolvimento que subordinem a política externa
dos Estados Unidos a essa esdrúxula proteção e
sobrevivência cultural dos povos indígenas do mundo
inteiro.
Suspeita-se que seja o primeiro grande passo legal
e preparatório para legitimar depois, interna e
externamente, intervenções como aquela que ontem
desmembraram no istmo da América Central o Panamá da
Colômbia, e fizeram nascer a república de Noriega, ou
anexaram o Texas à União Americana, a expensas do México.
Não é de espantar, portanto, se amanhã os
missionários estrangeiros da Amazônia, até mesmo com a
cumplicidade das Nações Unidas, proclamarem na reserva
indígena, que cresce de tamanho a cada ano e já tem a
superfície de um país de extensão de Portugal, uma
república ianomâmi, menos para proteger o índio do que para
preservar interesses das superpotências.
Incalculáveis riquezas jazem na selva amazônica e
a proteção da cultura indígena trouxe a presença ali de
cavaleiros que se adestram para segurar as rédeas de um
novo e estranho Cavalo de Tróia.
O que parece à primeira vista apreensão infundada
ou mero pesadelo de Cassandras nacionalistas, bem cedo, se
não atalharmos o mal pela raiz, mediante vivência efetiva
nas fronteiras do Norte e Oeste, se tornará um fato
consumado, uma tragédia, e como todas as tragédias, algo
irremediável. A consciência da nacionalidade, picada de
remorso, não saberia depois explicar às gerações futuras
com honra e dignidade tanta omissão e descaso. O assalto à
soberania está pois em curso. É hora de pensar no Brasil!
Pet 3.388 / RR
41
A respeito da matéria, Ives Gandra Martins, em
livro escrito a quatro mãos com o saudoso Celso Ribeiro Bastos,
assim se manifestou14:
Por outro lado, as organizações internacionais – e
a matéria já tem sido denunciada – procuram tratar o
território como indígena, mais do que brasileiro, razão
pela qual, em eventual internacionalização da Amazônia para
imposição da política externa, os verdadeiros titulares da
terra seriam os indígenas e não os brasileiros.
Dissociando os indígenas do povo brasileiro e suas
terras do Estado brasileiro, tais organizações pretendem
tornar o problema indígena do Brasil um problema de
preservação dos costumes primitivos, que é dever da
humanidade, tornando mais fácil, à evidência, a exploração
de dez por cento do território nacional, reservado aos
duzentos e cinqüenta mil remanescentes da população
indígena – propugnando por acordos convenientes a tais
grupos mais do que a interesses do País.
Mais recentemente, em 21 de dezembro de 2008,
veio novamente a alertar sobre a matéria, fazendo-o presente a
importância deste histórico julgamento, em artigo publicado, no
jornal Folha de São Paulo, sob o título "11 Cidades de São
Paulo":
...185 milhões de brasileiros podem andar
livremente só por 87% do País, mas aos índios garante-se o
direito de percorrer 100% do Brasil.
Ressaltou:
Um território correspondente a 11 cidades de São
Paulo (que tem quase 11 milhões de habitantes) – o que
valeria dizer, se habitado nos moldes dessa metrópole, a
mais de 110 milhões de brasileiros – foi praticamente
assegurado pelo Supremo Tribunal Federal para apenas 18 mil
índios.
14 MARTINS, Ives Gandra da Silva e BASTOS, Celso Ribeiro. Comentários à
Constituição do Brasil.
Vol. 8. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 1.046.
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Também o Deputado Aldo Rebelo – que integra o PC
do B – e foi Presidente da Comissão de Relações Exteriores e
Segurança Nacional da Câmara dos Deputados, em entrevista ao
jornal O Estado de S. Paulo, revelou grande preocupação com o
pano de fundo do conflito ora em exame15.
Ao ser indagado se era alarmista falar da cobiça
internacional sobre a Amazônia, respondeu:
As manifestações em favor da submissão da Amazônia
a uma espécie de tutela internacional só podem causar
repulsa aos brasileiros com o mínimo de dignidade. As
declarações e os estudos cobiçando a Amazônia são reais,
desde o século XVII. Dom Pedro II, numa carta a Condessa de
Barral, já explicava por que não atendeu ao pedido de um
conterrâneo meu, então deputado Tavares Bastos, para abrir
a calha da Amazônia à navegação estrangeira. Se fizesse
isso, disse Dom Pedro, iríamos ter protetorados na Amazônia
iguais aos que foram criados na China pelas potências
estrangeiras. Sabia o que estava em jogo.
Sobre a questão indígena, disse:
Fui a uma reserva ianomâmi, perto de um pelotão de
fronteira do exército, e visitei uma maloca. Deparei-me com
umas cinquenta famílias convivendo dentro de um ambiente
fechado, de penúria. Muitos fogos dentro da maloca para as
famílias assarem bananas e mandiocas, muita poluição, muita
fuligem, um ambiente com incidência muito grande de doenças
infecciosas. Até tuberculose. Fui recepcionado por uma moça
de uma organização não-governamental, a ONG Urihi.
Perguntei por que não se puxava do pelotão água e luz para
dentro da comunidade indígena, o que daria mais conforto à
população. A moça da ONG disse que não, que isso ia
deformar o modo de vida dos índios. Nessa visita, o
comandante militar que estava comigo não pôde entrar na
15 Entrevista veiculada no jornal O Estado de S. Paulo, de 25 de
novembro de 2007, trecho
transcrito em "Tribalista Indígena – Ideal Comum no Missionário para o
Brasil no Século XXI", de
Plínio Correia de Oliveira.
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43
área indígena. Um grupo de crianças jogava futebol, e eu
joguei um pouco com elas. Comentei com a moça da ONG: Pelo
menos o futebol é um fator de integração, pois todos
torcemos pela mesma seleção. A moça me respondeu: Não. O
senhor torce pela seleção brasileira e os índios torcem
pela seleção deles. Nada mais falei e nada mais perguntei.
Continuou, então, quanto ao sintoma revelado pelo
quadro: "Vi que havia ali uma incompreensão. Em outro
município perto do Pico da Neblina, as ONG's barraram, com
a ajuda do Judiciário, uma construção do exército. Só
depois que a decisão foi revogada na justiça é que o
exército pôde fazer a obra".
Questionado acerca da existência de índios que
desejariam conviver com os não-índios, afirmou:
Uma parcela dos antropólogos defende, com razão,
que a cosmogonia dos índios, a visão de seu surgimento e da
evolução do universo, é incompatível com a convivência dos
brancos e seus costumes. O problema em Roraima é que os
índios já estão – de certa forma - integrados. As meninas
índias de quinze, dezesseis anos não querem viver mais da
pesca, da coleta, não querem andar pela floresta com roupas
tradicionais. A aspiração é ter uma vida social, vestir-se
como se veste uma adolescente. O isolamento para essas
pessoas é uma ameaça, é a perda da possibilidade desta
convivência. A cosmogonia tem valor para as populações que
não tiveram contato com os não-índios.
A seguir, indagado sobre a essência do problema
do conflito em Roraima na reserva Raposa Serra do Sol, fez ver:
Nós reduzimos o problema a um duelo de pontos de
vista sobre se a demarcação contínua é certa ou errada. O
certo é que a situação expõe razões que, se consideradas
isoladamente, deformam o todo. O que nós queremos? Impor
uma derrota aos índios que reivindicam a demarcação
contínua? Queremos derrotar os que defendem a demarcação em
reservas ilhadas? Simplesmente corresponde à verdade dizer
que há ali, na região, apenas meia dúzia de arrozeiros.
Quem já esteve lá – e eu estive lá mais de uma vez – e quem
leu o relatório da Comissão Externa da Câmara sabe e viu
como foram construídos aqueles municípios dos não-índios em
Roraima. Tem gente que chegou lá no século XIX e no início
do século passado... Pior: o exército costuma ser barrado
quando quer entrar numa reserva.
Pet 3.388 / RR
44
Quanto ao paradoxismo, quanto à questão
geopolítica, asseverou:
Há populações na região da reserva Raposa Serra
do Sol que vivem ali muito antes de parcela das populações
indígenas que atravessaram as fronteiras vindas de guerras
tribais do Caribe. Creio que devemos receber e acolher
essas populações indígenas juntamente com as populações
indígenas que já existiam no Brasil. Mas devemos acolher
também, os brasileiros não-índios que ali chegaram há
muitos anos e ali construíram suas vidas. Como é que nós
podemos simplesmente, em um processo de demarcação,
declarar a extinção desses municípios, que é o caso do
município de Normandia, que é de 1904, Pacaraima e mesmo
Uiramutã. O de Uiramutã, nós conseguimos retirar da lista
de extinção em meio a uma negociação difícil. As pessoas
tinham ali as suas raízes, a sua infância, suas famílias,
sua história. A prefeita de Uiramutã me contou que o avô
dela chegou ali em 1908. Como é que nós vamos promover o
desterro dessa população? A decisão embute um erro
geopolítico. Quem não considera isso um problema grave não
está considerando o conjunto do problema. Nós não podemos
buscar a solução para o conflito com a exclusão de uma das
partes.
Aliás, é importante ter presente o trabalho
desenvolvido por Evaristo Eduardo de Miranda, doutor em ecologia
e Chefe-Geral da Embrapa Monitoramento por Satélite, quanto à
disponibilidade de terras para ampliação da produção de
alimentos e de energia, para a reforma agrária, para o
crescimento das cidades e para a instalação de obras de
infraestrutura no Brasil. Fez ver que:
Segundo pesquisa realizada pela Embrapa
Monitoramento por Satélite, em termos legais, apenas 29% do
País seria passível de ocupação agrícola. Cerca de 71% do
território está legalmente destinado a minorias e a
proteção e preservação ambiental. Como na realidade mais de
50% do território já está ocupado, configura-se um enorme
divórcio entre a legitimidade e a legalidade do uso das
terras e muitos conflitos.
Pet 3.388 / RR
45
Consignou, então:
Nos últimos anos, um número significativo de
áreas foram destinadas à proteção ambiental e ao uso
exclusivo de algumas populações, enquanto uma série de
medidas legais restringiu severamente a possibilidade de
remoção da vegetação natural, exigindo sua recomposição e o
fim das atividades agrícolas nessas áreas. A demanda
ambiental para a criação de novas UCS [unidades de
conservação], corredores ecológicos, áreas de restauração
ecológica e conservação prioritária da biodiversidade visa
quase três milhões de quilômetros quadrados. A demanda de
terras para colonização, assentamento e reforma agrária é
da ordem de dois milhões e novecentos mil quilômetros
quadrados. A demanda para criação e ampliação de terras
indígenas situa-se entre cinquenta e cem mil quilômetros
quadrados. A demanda de áreas para quilombolas chegaria a
duzentos e cinquenta mil quilômetros quadrados. A demanda
agrícola para expansão de alimentos e energia até 2018,
mesmo com a conservação de pastagens em áreas agrícolas e
ganhos de produtividade, situa-se entre cem mil e cento e
cinquenta mil quilômetros quadrados. Essa demanda adicional
representa quase seis milhões e quinhentos mil quilômetros
quadrados, uma área equivalente à soma dos territórios da
Argentina, Bolívia, Uruguai, Peru e Colômbia. Além disso,
há de contar-se as demandas do crescimento das cidades, da
infraestrutura viária, industrial e energético-mineradora,
a exemplo da implementação das obras do Programa de
Aceleração do Crescimento – PAC. É fisicamente impossível
conciliar o uso atual e atender à totalidade das demandas
futuras.
Ainda há mais. Repetindo o que veiculei durante o
exame da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.399-3/AM,
relembro as palavras de Cristovam Buarque sobre a Amazônia,
quando o Senador da República referiu-se, ainda que
indiretamente, ao tema:
Durante debate recente em uma Universidade, nos
Estados Unidos, o ex-governador do Distrito Federal,
Cristovam Buarque, do PT, foi questionado sobre o que
pensava da internacionalização da Amazônia. O jovem
introduziu sua pergunta dizendo que esperava a resposta de
um humanista e não de um brasileiro. Segundo Cristovam, foi
a primeira vez que um debatedor determinou a óptica
humanista como o ponto de partida para a sua resposta:
Pet 3.388 / RR
46
De fato, como brasileiro eu simplesmente falaria
contra a internacionalização da Amazônia. Por mais que
nossos governos não tenham o devido cuidado com esse
patrimônio, ele é nosso. Como humanista, sentindo o risco
da degradação ambiental que sofre a Amazônia, posso
imaginar a sua internacionalização, como também de tudo o
mais que tem importância para a Humanidade. Se a Amazônia,
sob uma ótica humanista, deve ser internacionalizada,
internacionalizemos também as reservas de petróleo do mundo
inteiro. O petróleo é tão importante para o bem-estar da
humanidade quanto a Amazônia para o nosso futuro. Apesar
disso, os donos das reservas sentem-se no direito de
aumentar ou diminuir a extração de petróleo e subir ou não
o seu preço. Da mesma forma, o capital financeiro dos
países ricos deveria ser internacionalizado. Se a Amazônia
é uma reserva para todos os seres humanos, ela não pode ser
queimada pela vontade de um dono, ou de um país. Queimar a
Amazônia é tão grave quanto o desemprego provocado pelas
decisões arbitrárias dos especuladores globais. Não podemos
deixar que as reservas financeiras sirvam para queimar
países inteiros na volúpia da especulação. Antes mesmo da
Amazônia, eu gostaria de ver a internacionalização de todos
os grandes museus do mundo. O Louvre não deve pertencer
apenas à França. Cada museu do mundo é guardião das mais
belas peças produzidas pelo gênio humano. Não se pode
deixar que esse patrimônio cultural, como o patrimônio
natural amazônico, seja manipulado e destruído pelo gosto
de um proprietário ou de um país. Não faz muito, um
milionário japonês decidiu enterrar com ele um quadro de um
grande mestre. Antes disso, aquele quadro deveria ter sido
internacionalizado. Durante este encontro, as Nações Unidas
estão realizando o Fórum do Milênio, mas alguns presidentes
de países tiveram dificuldades em comparecer por
constrangimentos na fronteira dos EUA. Por isso, eu acho
que Nova York, como sede das Nações Unidas, deve ser
internacionalizada. Pelo menos Manhattan deveria pertencer
a toda a Humanidade. Assim como Paris, Veneza, Roma,
Londres, Rio de Janeiro, Brasília, Recife, cada cidade, com
sua beleza específica, sua história do mundo, deveria
pertencer ao mundo inteiro. Se os EUA querem
internacionalizar a Amazônia, pelo risco de deixá-la nas
mãos de brasileiros, internacionalizemos todos os arsenais
nucleares dos EUA. Até porque eles já demonstraram que são
capazes de usar essas armas, provocando uma destruição
milhares de vezes maior do que as lamentáveis queimadas
feitas nas florestas do Brasil. Nos seus debates, os atuais
candidatos a presidência dos EUA têm defendido a idéia de
internacionalizar as reservas florestais do mundo em troca
da dívida. Comecemos usando essa dívida para garantir que
cada criança do mundo tenha possibilidade de ir à escola.
Internacionalizemos as crianças tratando-as, todas elas,
não importando o país onde nasceram, como patrimônio que
merece cuidados do mundo inteiro. Ainda mais do que merece
a Amazônia. Quando os dirigentes tratarem as crianças
pobres do mundo como um patrimônio da Humanidade, eles não
deixarão que elas trabalhem quando deveriam estudar; que
morram quando deveriam viver. Como humanista, aceito
defender a internacionalização do mundo. Mas, enquanto o
mundo me tratar como brasileiro, lutarei para que a
Amazônia seja nossa. Só nossa.
Pet 3.388 / RR
47
Também vale registrar que, em 1987, o professor
Plínio Correia de Oliveira, autor de "Tribalismo Indígena",
diante dos trabalhos de elaboração da Carta de 1988, advertiu:
O projeto de constituição, a adotar-se em uma
concepção tão hipertrofiada dos direitos dos índios, abre
caminho a que se venha a reconhecer aos vários agrupamentos
indígenas uma como que soberania diminutae rations. Uma
autodeterminação, segundo a expressão consagrada. (Projeto
de constituição angustia o país, editora Vera Cruz, São
Paulo, 1987, página 182 e página 119 da obra citada).
Proféticas palavras tendo em conta, até mesmo, o
fato de o Brasil, em setembro de 2007, haver concorrido, no
âmbito da Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas,
para a aprovação da Declaração Universal dos Direitos dos
Indígenas. Mesmo diante de onze abstenções e quatro votos
contrários – Canadá, Estados Unidos, Nova Zelândia e Austrália -,
sendo que a Colômbia foi o único país ibero-americano que não
votou a favor, abstendo-se, o Brasil, outrora em oposição, veio
a aderir. Segundo cláusulas do instrumento, o direito à terra é
um dos mais importantes, não podendo acontecer ação alguma em
terras indígenas sem consentimento prévio, afastadas as
operações com fins militares ou a utilização como depósito de
resíduos tóxicos. Mas a problemática maior está na cláusula
reveladora da autodeterminação dos povos indígenas, o que sugere
a vinda à balha de independência mitigadora da soberania
nacional. No caso presente, tudo isso ocorre a alcançar espaço
Pet 3.388 / RR
48
territorial brasileiro que já foi alvo de disputa com a
Venezuela – o norte de Roraima.
Por isso mesmo, o comandante da Amazônia,
General Heleno, indagado sobre a cobiça internacional, afirmou:
Essa é uma questão que extrapola o componente
militar. A cobiça internacional não se manifesta por
ações explícitas de força. Ela age de forma sub-reptícia,
pouco transparente e dissimulada. Fica difícil entender
por que pouquíssimas ONGs dedicam-se a socorrer a
população nordestina enquanto centenas delas trabalham
junto às populações indígenas. Algumas, ao que parece,
investem milhões de dólares na região. Não se trata de
uma questão de governo, mas uma questão de estado, uma
questão de soberania16.
Sim, é preocupante haver tantos olhos
internacionais direcionados à Amazônia enquanto população
carente, como a nordestina, não conta com o apoio desejável. A
questão veio a ser escancarada em 8 de dezembro de 2008, quando
o mesmo jornal, O Estado de S. Paulo, compromissado com o
destino da nação, noticiou que aguardava assinatura do
Presidente da República decreto restringindo a entrada de ONGs e
missionários em terras indígenas. Em chamada, na publicação,
apontou-se que:
As iniciativas do Governo Federal para ter maior
controle sobre as organizações não-governamentais que
atuam na Amazônia são uma espécie de resposta às críticas
dos meios militares. Elas começaram a ser anunciadas em
16 O Estado de S. Paulo, de 25 de novembro de 2007.
Pet 3.388 / RR
49
abril, logo após o comandante militar da Amazônia,
general Augusto Heleno Ribeiro Pena, ter dito durante uma
palestra que a política indigenista praticada no País é
"lamentável, para não dizer caótica".
Segundo o general, que é contrário à demarcação da
terra indígena Raposa Serra do Sol em área contínua, como
determinou o presidente da República, existem ONGs
internacionais que estimulam os índios a lutar pela
divisão do território nacional.
Dias depois, o ministro da Justiça, Tarso Genro,
admitiu a existência de ONGs que "escondem interesses
relacionados à biopirataria e à tentativa de influência
na cultura indígena, para apropriação velada de
determinadas regiões.
Essas últimas são palavras de Ministro de
Estado, são palavras de técnico em Direito.
No relatório da Comissão da Câmara dos
Deputados, de 2004, aparecem notícias preocupantes, que têm
origem em visão de dignitários. Al Gore, ex-Vice-Presidente dos
Estados Unidos da América, em 1989, chegou a dizer com todas as
letras: "Ao contrário do que os brasileiros pensam, a Amazônia
não é deles, mas de todos nós". François Mitterrand, ex-
Presidente da França, em 1989, veiculou: "O Brasil precisa
aceitar uma soberania relativa sobre a Amazônia". Mikhail
Gorbachev, ex-Presidente da Rússia, em 1992, bateu em idêntica
tecla: "O Brasil deve delegar parte de seus direitos sobre a
Amazônia aos organismos internacionais competentes". No mesmo
sentido foi a fala de John Major, ex-Primeiro-Ministro do Reino
Unido, em 1992: "As nações desenvolvidas devem estender o
domínio da lei ao que é comum de todos no mundo, as campanhas
ecologistas internacionais sobre a região Amazônica estão
Pet 3.388 / RR
50
deixando a fase propagandística para dar início a uma fase
operativa, que pode, definitivamente, ensejar intervenções
militares diretas sobre a região".
Revela-se, portanto, a necessidade de abandonarse
a visão ingênua. O pano de fundo envolvido na espécie é a
soberania nacional, a ser defendida passo a passo por todos
aqueles que se digam compromissados com o Brasil de amanhã.
Essas considerações hão de ficar nos anais do Supremo, para
registrar-se o que realmente veio à balha no julgamento desta
ação popular.
DOS DOCUMENTOS E TENDÊNCIAS DOS GRUPOS QUE OS
ELABORARAM
Sobre as visões defendidas pelos grupos no
processo de demarcação das terras indígenas Raposa Serra do Sol
e São Marcos, cabe transcrever parte do voto proferido pelo
ministro Maurício Corrêa no julgamento da Ação Direta de
Inconstitucionalidade nº 1.512-5/RR:
[...]
11. Anote-se que na busca da consumação dessa
proposta se batem duas correntes formadoras de opinião que
no local disputam seguidores; a primeira decorrente da
pressão dos católicos, com o apoio da igreja e da FUNAI,
encabeça a tese da definição do ato através de demarcação
contínua; enquanto a outra, a favor dos blocos ou ilhas,
separando as terras dos brancos das dos indígenas, e de
modo descontínuo, por ela propugnam os evangélicos e o
Governo do Estado, aí incluindo todo o estamento político
oficial, inclusive os seus Senadores e Deputados Federais.
A agravar esse quadro realístico permanece uma
outra crucial realidade. Com o passar dos tempos as vilas,
Pet 3.388 / RR
51
mescladas de brancos e índios, foram se formando, como dão
conta as implantações da Vila Surumu, Maloca do Barro, Vila
Água Fria, Maloca Maturuca, Vila Socó, Vila Uirimatã,
Maloca do Uirimatã, Vila Mutum, Maloca Bismark e Maloca
Raposa, mantendo a Administração Pública, em boa parte
dessas aglomerações, tanto por parte do Estado de Roraima,
quanto pela União, Escolas Públicas de 1° e 2° Graus,
Quartéis da Polícia Militar, Polícia Federal, Cadeias
Públicas, Abastecimento de Água, Quartel do Exército,
Delegacias de Polícia Civil, Geradores de Eletricidade, com
rede de postes e fios, Postos de Saúde e Telefônico da
Telaima, Postos das Receitas Estadual e Federal, em vários
desses lugarejos. Há serviços de ônibus, pistas de pouso
para pequenos aviões, e em muitas casas há televisões
conectadas com antenas parabólicas, repetidoras de rádio e
toda uma estrutura de atividades desenvolvidas pelos
habitantes desses núcleos.
12. O exame desse tema seguramente vai demandar,
ademais, que se atenha à legislação da época, no caso, no
meio dela, a Lei n° 601, de 1850 e seu Decreto n° 1918, de
1854, que a regulamentou, e pela qual se dava legitimação à
posse dos que detêm a terra. Sustenta a FUNAI que essas
terras não eram e não são devolutas e sim pertencentes
tradicionalmente aos índios, sendo nulos os títulos que
foram expedidos.
Já por aí se vai vendo que o emaranhado de fatos e
ações concretas exige e exigirão percuciente análise de
toda uma legislação do século passado e meticulosa pesquisa
de documentos e possivelmente a coleta de depoimentos de
eventuais testemunhas que conhecem algo sobre o passado
dessas fazendas e de seus primeiros possuidores.
Dois fatos podem ser tidos como incontroversos:
a) a área em que se situam os Municípios de
Uiramutã e Pacaraima, desde os primeiros apontamentos acerca da
origem, registra a presença dos índios Macuxi, Ingaricó,
Taurepang, Wapixana e Patamona - voto do ministro Maurício
Corrêa na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.512-5/RR;
b) existem fazendeiros na região detentores de
títulos de propriedade de terras cadastradas pelo Incra,
registrados em cartório - voto do ministro Maurício Corrêa na
Pet 3.388 / RR
52
Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.512-5/RR. Nesse ponto,
cabe conferir, ainda, trecho do citado Despacho nº 80, de 20 de
dezembro de 1996, posteriormente revogado, do então Ministro da
Justiça Nelson Jobim (folhas 945 e 946, volume 4):
4.3.2. Imóveis titulados pelo INCRA
Por linha idêntica de raciocínio, tem a
Administração Federal o dever ético e político de
resguardar os títulos de propriedade outorgados pelo INCRA
sobre áreas então excluídas pela própria FUNAI dos limites
da terra indígena.
O Laudo 1981, na parte sul e sudoeste da área, fez
delimitação que não atingia as margens dos rios Tacutu e
Surumu.
Respaldado nesse laudo de 1981, parte da área
então excluída, no sul e sudeste, veio a ser objeto de
titulação de terceiros pelo INCRA, o que ocorreu de 1982 em
diante.
Impõe-se, assim, o restabelecimento da linha
divisória estabelecida em 1981, em decorrência do que
ficarão excluídas as propriedades mencionadas, o que, de
resto, não trará prejuízos ao projeto demarcatório, em seu
todo.
Por outro lado, é de se observar que o
levantamento antropológico de 1993, posterior ao de 1981,
não contém fundamento específico algum que demonstre ser
essa parte da área indispensável à preservação indígena. Na
verdade, o laudo de 1993 é absolutamente silente quanto a
qualquer fundamento revisor, nessa parte, do laudo
anterior.
4.3.3. Fazenda Guanabara
Igualmente a Fazenda Guanabara, de posse privada
antiqüíssima, situada no extremo leste da área (mapa, O-
18), deverá ser excluída, sem comprometer a integridade da
gleba indígena, à luz dos pressupostos constitucionais. É
que o referido imóvel, anteriormente denominado "Cuieria" é
de ocupação privada anterior a 1934, desde 1918, consoante
reconheceu sentença judicial proferida em ação
discriminatória movida pelo INCRA (fls. 31 do processo nº
1959/96).
Para não encravar o imóvel, sua exclusão deverá
ser feita estendendo-se a respectiva linha divisória para o
sul, em direção à cidade de Normandia, o que importará,
também, na ampliação do espaço reservado a esse centro
urbano.
Pet 3.388 / RR
53
É esse o contexto que o Supremo não pode
simplesmente ignorar, solapando valores maiores, desconhecendo o
fato de índios e não-índios serem todos brasileiros, a eles
estando assegurada constitucionalmente a "livre locomoção no
território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa,
nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus
bens" – inciso XV do artigo 5º da Carta Federal, rol das
garantias constitucionais.
Que a visão romântica, calcada em resgate de
dívida caduca – e porque não falar dos quilombolas –, seja
alijada deste julgamento.
DA PETIÇÃO INICIAL
O autor argumenta ter a Portaria nº 534 mantido
os vícios da antiga Portaria nº 820, quais sejam, aqueles
apontados em perícia realizada na Ação Popular nº
1999.42.00.000014-7, ajuizada por Silvino Lopes da Silva, que
tramitou perante Vara Federal de Roraima e foi extinta em face
da perda de objeto. Afirma haver a Comissão de Peritos, antes
mesmo de apresentar resposta aos quesitos, concluído, por
unanimidade, o seguinte (folhas 7 e 8):
Que seja considerada nula de pleno direito a
Portaria 820, de 11 de dezembro de 1998, do Excelentíssimo
Senhor Ministro de Estado da Justiça, que declarou de posse
indígena a "terra indígena Raposa Serra do Sol", por ter
sido ato praticado após a vigência do Decreto 1.775/96, e
não se ter pautado pelas normas ali prescritas, além de
Pet 3.388 / RR
54
todo o processo ter sido eivado de erros e vícios
insanáveis, tais como:
i. Contou com a participação parcial de apenas um
dos lados dos indígenas, o dos que defendem a demarcação em
área contínua;
ii. Teve a participação do Governo do Estado
completamente comprometida, inclusive, por omissão e
descaso do próprio Governo Estadual, à época;
iii. A academia não foi devidamente convidada a
participar, nem participou como deveria;
iv. Sem razão explicitada, incluiu no grupo
técnico interinstitucional, a Igreja Católica, única
representante das entidades religiosas, com dois
representantes;
v. Os Municípios à época envolvidos, Boa Vista e
Normandia, não participaram nem foram convidados a
participar do grupo técnico;
vi. Os produtores agropecuários, os comerciantes
estabelecidos nas localidades, os garimpeiros, e os demais
atores não foram sequer considerados;
vii. O Grupo Interinstitucional de trabalho não
apresentou "relatório circunstanciado ao órgão federal de
assistência ao índio, caracterizando a terra indígena a ser
demarcada" como manda o parágrafo 7º do Art. 2º do Decreto
nº 22, de 04.02.91 (vigente à época), sobre o procedimento
administrativo de demarcação das terras indígenas;
viii. O relatório apresentado pela antropóloga é
uma coletânea de peças completamente independentes, sem
formar um corpo lógico tendente a indicar qualquer tipo de
demarcação;
ix. O relatório não contém análise alguma da qual
se possa tirar conclusões sobre importantes tópicos, tais
como:
a. Reflexos sobre os interesses da Segurança e da
Defesa Nacionais;
b. Reflexos sobre a importância da região para a
economia do Estado de Roraima;
x. O laudo antropológico da FUNAI (apresentado
pela antropóloga MARIA GUIOMAR) é uma reprodução, sem
novidade alguma, de laudo anteriormente apresentado para
justificar outro tipo de demarcação para as mesmas terras
da Raposa Serra do Sol;
xi. A Portaria 820/98 englobou na demarcação das
terras indígenas Raposa Serra do Sol a área constante do
Parque Nacional Monte de Roraima, criado pelo Decreto
97.887, de 28.07.89;
Pet 3.388 / RR
55
xii. A Portaria 820/98 englobou a área de 90.000
há dos Ingarikós, já demarcada anteriormente por meio da
Portaria Interministerial nº 154, de 11.06.89, sem maiores
explicações.
A conclusão semelhante chegou a Câmara dos
Deputados, conforme relatório da Comissão Externa constituída
para avaliar, no local, a situação da demarcação em área
contínua da Reserva Indígena Raposa Serra do Sol. Eis o que
consta à folha 6566 à 6568, volume 25:
[...]
Os trabalhos desta Comissão mostraram que o
processo de demarcação da área indígena Raposa/Serra do Sol
foi desenvolvido de forma irregular, contendo ilegalidades
e inconstitucionalidades.
A elaboração de peças centrais do Laudo
Antropológico por entidades ligadas à defesa dos direitos
indígenas compromete a sua isenção, em prejuízo dos
princípios da impessoalidade e da razoabilidade da atuação
da Administração Pública.
Outrossim, o Laudo não comprova com o devido
detalhamento e profundidade o atendimento aos requisitos do
art. 231 da Constituição, como expressamente reconhecido no
Despacho nº 80/96, do Ministério da Justiça.
Há contradição insolúvel entre a decisão das
contestações administrativas à área pretendida, expressa no
Despacho nº 80/96, e a Portaria de Identificação nº 820/98,
ambos do Ministério da Justiça. A exclusão de áreas que não
se caracterizam como indígenas ordenada pelo Despacho não
foi efetuada pela Portaria, em violação ao art. 2º, §8º e §
10, inciso III, do Decreto nº 1.775, de 1996, e em
contradição aos motivos declarados pela Administração no
procedimento administrativo de demarcação. Tal procedimento
sujeita a Portaria à anulação pela Administração, e ao
controle pelo Poder Judiciário.
Considerando as falhas havidas no processo
demarcatório, a Portaria nº 820/98 inclui em área indígena
terras que não atendem aos requisitos do artigo 231 da
Constituição Federal. A Portaria é, portanto,
inconstitucional.
A atual delimitação da área indígena Raposa/Serra
do Sol trouxe prejuízos para a segurança jurídica na
região, violando direitos adquiridos e a autoridade da
coisa julgada, em flagrante inconstitucionalidade.
Pet 3.388 / RR
56
Sendo a Constituição Federal um sistema normativo,
é equívoco interpretar seu art. 231 isoladamente, como
único fundamento constitucional para a demarcação da
reserva Raposa/Serra do Sol e das terras indígenas em
geral. O conteúdo do art. 231 deve ser compatibilizado com
outros dispositivos constitucionais (e.g. soberania, art.
1; segurança nacional, art. 91, § 1º; autonomia federativa,
art. 18; devido processo legal, art. 5º, LIV; garantia da
propriedade, art. 5º, XXII) e princípios gerais da ordem
jurídica (e.g. proteção da boa fé dos atos jurídicos), de
forma a que se atinja um equilíbrio entre os direitos das
partes envolvidas).
A supressão do Município de Uiramutã, como
conseqüência da Portaria nº 820/98, viola a autonomia de
ente federado criado segundo regular processo
constitucional, legitimado mediante consulta plebiscitária
às populações interessadas.
A situação da área Raposa/Serra do Sol em faixa de
fronteira recomenda a oitiva do Conselho de Defesa
Nacional, nos termos do art. 91, §1º, III, da Constituição
Federal.
É certo que o interesse de proteção das
comunidades indígenas há de ser respeitado, nos moldes do
art. 231 da Constituição Federal. Cumpre entretanto lembrar
que a Constituição é patrimônio de todos os brasileiros. A
proteção que ela oferece vai muito além do citado artigo e
suas disposições alcançam cada grupo, cada etnia e cada
cidadão, para que na proteção de cada um de nós o bem
coletivo se realize. Sendo a Carta Magna uma unidade
normativa cabe interpretar a proteção ao interesse das
comunidades indígenas de forma a não prejudicar – no caso
gravemente – interesses legítimos e igualmente tutelados
pelo texto constitucional. Caberá ao Poder Executivo da
União, ente competente para a solução da controvérsia aqui
exposta, ter sabedoria para concretizar esse objetivo.
Já o Ministério Público Federal, no parecer de
folha 398 a 400 - volume 2 -, no qual se manifestou pela
improcedência do pedido formulado, conclui em sentido diverso:
[...]
29. Em termos concretos, e seguindo o propósito do
constituinte, uma vez positivada a tutela dos povos
indígenas, a ação administrativa dá corpo ao modelo
adotado, obedecendo ao regime legal em vigor – Decreto nº
1.775/96 e, antes dele, o Decreto nº 22/91 -, que encerra
as seguintes fases: (i) estudo multidisciplinar, conduzido
por antropólogo, como adiantado, que indicará os limites do
território em conformidade com o art. 231 da Constituição
Pet 3.388 / RR
57
da República; (ii) designação de grupo técnico
especializado com a finalidade de realizar estudos
complementares, "composto preferencialmente por servidores
do próprio quadro funcional"; (iii) encaminhamento do
resultado do trabalho ao Presidente da FUNAI, que o
publicará, em sendo aprovado, no Diário Oficial da União e
no da unidade federada onde se localizar a área objeto de
demarcação; (iv) abertura de prazo para impugnações, "desde
o início do procedimento demarcatório até noventa dias após
a publicação" referida, que serão julgadas pela FUNAI; (v)
remessa do procedimento ao Ministério da Justiça, que
poderá declarar, por portaria, os limites da terra
indígena, prescrever as diligências que julgar necessárias
ou desaprovar a identificação.
30. No caso estudado, da 'Terra Indígena Raposa
Serra do Sol', tome-se como posição do Ministério Público
Federal a plena regularidade do procedimento administrativo
que resultou no ato demarcatório/homologatório impugnado,
porque fundado em consistente estudo antropológico, assim
como criterioso na verificação de todas as fases
procedimentais exigidas pela ordem legal, seguindo o
pronunciamento já mencionado da 6ª Câmara de Coordenação e
Revisão da instituição, que o acompanhou em todas as suas
etapas (documento anexo).
31. Especificamente em relação ao contraditório e
à ampla defesa – ponto atacado com maior ênfase -, o que
abarca a alegação de participação deficitária de grupos e
entidades determinadas no procedimento demarcatório,
verifica-se rigoroso respeito aos comandos do Decreto nº
1.775/96, em especial aos seus arts. 2º, § 8º, e 9º, já
declarados legítimos, como efetivos garantidores dos
princípios citados, pelo Plenário dessa Corte, quando do
julgamento do MS º 24.045, DJ de 5.8.2005, e MS 25.483, DJ
de 14.9.2007.
32. O estudo antropológico prescrito pelo ato
normativo foi realizado por profissional habilitado para
tanto, não sendo legítimo presumir seja parcial pelo só
fato de haver sido assinado por um único perito quando a
lei não exige modo diverso. Ali, está demonstrada não só a
posse tradicional e imemorial dos grupos indígenas sobre
toda a extensão da área, como a necessidade de demarcação
da faixa contínua de terras, de maneira a preservar a
cultura indígena nos moldes já descritos.
33. Verificada, por meio dos estudos cabíveis, a
presença dos elementos contidos no art. 231, § 1º, da
Constituição da República, caracterizada está a posse
indígena, devendo prevalecer sobre qualquer outra, porque
essencial ao exercício da identidade do grupo, cabendo à
União protegê-la e fazer respeitar todos os seus bens,
assegurando-se ainda aos índios o usufruto exclusivo das
riquezas ali existentes. A proteção, nesse nível, é
efetivada por meio do ato demarcatório de competência do
Ministério da Justiça, que será homologado, em seguida, por
Decreto do Presidente da República.
Pet 3.388 / RR
58
34. Aí a origem da Portaria nº 534/2005 e do
decreto homologatório da demarcação, de 15 de abril do
mesmo ano, livres, como visto, dos vícios formais
apontados, cabendo afastar, com base nas informações
prestadas pelas autoridades rés e no art. 3º do Decreto nº
1.775/96 – segundo o qual "os trabalhos de identificação e
delimitação de terras indígenas realizados anteriormente
poderão ser considerados pelo órgão federal de assistência
ao índio para efeito de demarcação, desde que compatíveis
com os princípios estabelecidos [naquele] Decreto" -, a
alegação de que a edição da nova portaria, revogadora
daquela de 1998 (de nº 820), deveria vir como conseqüência
de procedimento absolutamente desvinculado daquele que
precedeu a edição do ato anterior.
NULIDADE DO PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO, POR
VIOLAÇÃO DOS DECRETOS Nº 22/91 E 1.775/96, CONSIDERADA A NÃOPARTICIPAÇÃO
DE TODOS OS INTERESSADOS – OFENSA AO CONTRADITÓRIO
E À AMPLA DEFESA
Vale lembrar ter o autor citado o relatório da
Comissão de Peritos, em que arguida a nulidade do procedimento
administrativo, considerando, entre outros aspectos, os
seguintes (folha 7):
i. Contou com a participação parcial de apenas um
dos lados dos indígenas, a dos que defendem a demarcação em
área contínua;
ii. teve a participação do Governo do Estado
completamente comprometida, inclusive, por omissão e
descaso do próprio Governo Estadual, à época;
iii. A academia não foi devidamente convidada a
participar, nem participou como deveria;
iv. Sem razão explicitada, incluiu no grupo
técnico interinstitucional, a Igreja Católica, única
representante das entidades religiosas, com dois
representantes;
v. Os Municípios à época envolvidos, Boa Vista e
Normandia, não participam nem foram convidados a participar
do grupo técnico;
Pet 3.388 / RR
59
vi. Os produtores agropecuários, os comerciantes
estabelecidos nas localidades, os garimpeiros, e os demais
atores não foram sequer considerados;
Sustenta a participação deficitária de grupos e
entidades no processo demarcatório. É que o artigo 9º do Decreto
nº 1.775/96 prevê, relativamente às demarcações então em curso,
cujo decreto homologatório não tenha sido objeto de registro em
cartório imobiliário ou na Secretaria de Patrimônio da União, do
Ministério da Fazenda, poderem os interessados se manifestar no
prazo de noventa dias, contados da respectiva publicação.
Cumpre consignar a distinção entre o direito de
defesa dos interessados de terras cujos processos demarcatórios
hajam começado antes do advento do Decreto nº 1.775/96 - tal
como o relativo à demarcação da Reserva Raposa Serra do Sol,
porquanto o grupo de trabalho foi constituído pela Portaria PP
nº 1.141/92, de 6 de agosto de 1992 - e aqueles cujos processos
tenham tido início após a publicação do Decreto.
No primeiro caso, o contraditório não alcança
todas as fases do processo de demarcação, havendo apenas uma
única oportunidade de defesa, já perante a autoridade do
Ministério da Justiça.
Nesse ponto, cabe registrar ter o Plenário
assentado a constitucionalidade do procedimento. Eis o trecho da
ementa do acórdão alusivo ao Mandado de Segurança nº 25.483-1/DF -
relatado pelo ministro Carlos Ayres Britto -, publicada no
Diário da Justiça de 14 de setembro de 2007:
Pet 3.388 / RR
60
[...]
Não há que se falar em supressão das garantias do
contraditório e da ampla defesa se aos impetrantes foi dada
a oportunidade de que trata o artigo 9º do Decreto 1.775/96
(MS 24.045, Rel. Min. Joaquim Barbosa).
[...]
Mandado de Segurança parcialmente conhecido para
se denegar a segurança.
No voto, o ministro Carlos Ayres Britto assim se
pronunciou:
[...]
19. Da mesma forma, afasto a alegação de que aos
impetrantes não foi ensejada oportunidade de defesa, no
procedimento administrativo demarcatório das Terras
Indígenas Raposa Serra do Sol. O que faço, em primeiro
lugar, acolhendo o entendimento de que, dada a
possibilidade de os interessados se manifestarem sobre a
demarcação, no prazo de 90 dias (artigo 9º do Decreto
1.775/96), não é de se falar em supressão da garantia da
ampla defesa e do contraditório (MS 24045, Rel Min. Joaquim
Barbosa). Em segundo lugar, as informações trazidas pelo
Presidente da República dão conta que "os impetrantes,
assim como o Estado de Roraima, foram cientificados do
processo de demarcação da terra indígena e tiveram o prazo
de contestação lhes facultado pelo art. 9º do Decreto nº
1.775/96" (folha 1.095). Contestações, aliás, que foram
feitas, analisadas e indeferidas pelo Ministro da Justiça
(fls. 559), conforme se lê das informações prestadas pelo
Presidente da República.
[...]
No tocante à alegação de supressão da garantia do
contraditório e da ampla defesa, foi evocado o que decidido no
Mandado de Segurança nº 24.045-8/DF, relatado pelo ministro
Joaquim Barbosa no Plenário, em 24 de abril de 2005, quando
fiquei vencido, consignando o seguinte:
No mérito, peço vênia ao relator para conceder a
segurança, porque a evocação do contraditório não se dá,
evidentemente, considerado o Decreto nº 1.775/96.
Pet 3.388 / RR
61
Esse decreto previu o contraditório, mas o fez
para, de certa forma, reconhecer que até então estaria
havendo transgressão do princípio constitucional do
contraditório quanto ao processo administrativo em curso. E
revelou que processos subseqüentes ao decreto teriam o
contraditório observado desde o início, enquanto aqueles já
em andamento seguiriam, abrindo-se dali para frente a
oportunidade de manifestação não só das pessoas jurídicas
de Direito Público, como também de interessados.
Ora, se não houve a observância, como é exigido
pela Constituição Federal, desde o início do processo
administrativo, evidentemente, o contraditório foi
inobservado.
Com essa óptica, peço vênia para conceder a ordem.
Nesse sentido, já me manifestara no julgamento do
Mandado de Segurança nº 21.575-5/MS, apreciado pelo Plenário em
3 de fevereiro de 1994, relativamente ao processo administrativo
de demarcação:
Acresce a isto que mesmo diante das conseqüências
jurídicas do Decreto homologatório da demarcação – se é que
ele realmente as tem – posto que formalmente baixado para
os fins fixados no artigo 231 da Constituição Federal, os
Impetrantes não foram cientificados para, querendo,
acompanhar o processo administrativo que lhe serviu de base
e no qual se entendeu pelo enquadramento das terras como de
ocupação indígena. Somente com a conclusão respectiva se
lhes dirigiram cartas comunicando a reocupação da área
pelos índios e conferindo o exíguo prazo de cinco dias para
desocupação, sob pena de a FUNAI não se responsabilizar por
atos predatórios dos indígenas, seguindo-se o requerimento
junto ao Ofício de Imóveis com o objetivo de alterar os
registros constantes das matrículas.
O simples fato de tratar-se de um processo
administrativo de demarcação de terras não exclui a
observância das regras constitucionais asseguradoras do
direito de defesa – incisos LIV e LV do artigo 5º. O que se
nota é que os Impetrantes tiveram os imóveis alcançados
pelo Decreto de homologação, sem que tenham participado do
processo administrativo que lhe deu causa.
Quanto à participação dos povos indígenas,
aponta-se não haverem sido consideradas, no trabalho, as
Pet 3.388 / RR
62
opiniões, manifestações e informações de grupos indígenas
envolvidos – Wapixana, Patamona, Ingaricó e Taurepang -, apenas
se tendo ouvido o grupo Macuxi.
Eis como o relator se manifesta sobre o tema, o
que torna o fato incontroverso, sobretudo em relação aos
Ingaricós:
109. O mesmo é de se dizer quanto à participação
de qualquer das etnias da área: Ingarikó, Macuxi, Patamona,
Wapichana e Taurepang. Sendo que somente se apresentaram
para contribuir com os trabalhos demarcatórios os Makuxi,
filiados ao Conselho Indígena de Roraima – CIR. Os demais
indígenas, tirante os Ingarikó, atuaram diversas vezes nos
autos com cartas e petições. Todos forneciam informações e
nenhum deles subscreveu o relatório nem o parecer
antropológico, elaborados pela antropóloga Maria Guiomar
Melo, servidora da FUNAI e pelo Prof. Paulo Santilli,
respectivamente.
Nesse ponto, valho-me da opinião dos professores
S. James Anaya e Robert A. Williams Jr., externada em artigo
veiculado em publicação jurídica da Universidade de Harvard17
(tradução livre):
Como demonstrado anteriormente, à luz da Convenção
Americana, da Declaração Americana e de outras fontes de
direito internacional, os povos indígenas têm o direito de
proteção das terras que tradicionalmente ocupam e dos
recursos naturais. Dessa maneira, as normas de direitos
humanos que protegem os povos indígenas garantem, no
mínimo, interesses em terras e recursos naturais obrigam
aos estados a consultar com os grupos indígenas envolvidos
sobre quaisquer decisões que possam vir afetar os
interesses e adequadamente pesar esses interesses no
processo de formação de decisões.
17 "The Protection of Indigenous People's Rights over Lands and Natural
Resources Under the
Inter-American Human Rights System" in Harvard Human Rights Journal.
http://www.law.harvard.edu/students/orgs/hrj/iss14/williams.shtml#Heading388.
Acessado em 15 de
janeiro de 2009.
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63
Os mencionados professores citam trecho de
precedente da Suprema Corte do Canadá no qual consignado o
seguinte:
[...] existe sempre o dever de consulta... essa
consulta deve ser feita em boa-fé e com a intenção de
substancialmente abordar as preocupações dos povos
aborígenes cujas terras estão em jogo. Na maioria dos
casos, [a obrigação] será significativamente mais profunda
que a mera consulta. Alguns casos ... requerem o total
consentimento da nação aborígene18.
Observem o que preceitua o artigo 6º da Convenção
nº 169 da Organização Internacional do Trabalho sobre Povos
Indígenas e Tribais:
1. Ao aplicar as disposições da presente
Convenção, os governos deverão:
a) consultar os povos interessados, mediante
procedimentos apropriados e, particularmente, através de
suas instituições representativas, cada vez que sejam
previstas medidas legislativas ou administrativas
suscetíveis de afetá-los diretamente;
b) estabelecer os meios através dos quais os povos
interessados possam participar livremente, pelo menos na
mesma medida que outros setores da população e em todos os
níveis, na adoção de decisões em instituições efetivas ou
organismos administrativos e de outra natureza responsáveis
pelas políticas e programas que lhes sejam concernentes;
c) estabelecer os meios para o pleno
desenvolvimento das instituições e iniciativas dos povos e,
nos casos apropriados, fornecer os recursos necessários
para esse fim.
2. As consultas realizadas na aplicação desta
Convenção deverão ser efetuadas com boa-fé e de maneira
apropriada às circunstâncias, com o objetivo de se chegar a
um acordo e conseguir o consentimento acerca das medidas
propostas.
18 Delgamuukw v. British Columbia [1997] 3 S.C.R. 1010 (Can.) (1997).
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64
No mesmo sentido, a previsão do § 3º do artigo 2º
do Decreto nº 22/91, também constante do Decreto nº 1.775/1996,
ambos versando sobre o procedimento administrativo de demarcação
das terras indígenas:
Art. 2º. [...]
[...]
§ 3º O grupo indígena envolvido, representado
segundo suas formas próprias, participará do procedimento
em todas as suas fases.
Na inicial, o autor popular afirma não interessar
para muitos a demarcação contínua, pois provoca o isolamento dos
silvícolas. Alega estarem os índios da reserva, em grande
maioria, totalmente adaptados à sociedade envolvente. São índios
ditos integrados. Chega a afirmar ter sido constatado, no local,
que a maior parte dos silvícolas é contra a reserva tal como
concebida, ressaltando a parcialidade do trabalho técnico que
originou a Reserva Raposa Serra do Sol19.
Em obra intitulada "Índios de Roraima", de
autoria do Centro de Informação Diocese de Roraima, quanto aos
índios Ingaricós, não ouvidos no processo, assevera-se o
seguinte:
Os Ingarikó integram sua dieta com peixe, pescado
com anzóis de metal, e com caça, que apanham com arco e
flecha e também com espingardas, obtidas através de trocas
com os outros povos indígenas ou com garimpeiros brancos da
região limítrofe. Além das espingardas, os Ingarikó obtêm,
através de seu comércio, ferramentas, roupas e, até rádios
gravadores.
19 Memorial apresentado pelo ex-Ministro do Supremo Tribunal Federal,
Maurício Corrêa. p. 4.
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65
Relativamente aos Wapixanas, vejam trecho
consignado à folha 75 do referido livro:
A relação com a sociedade dos brancos, hoje,
desenvolve-se de várias maneiras, sobretudo através de um
contato direto com a cidade.
É necessário ressaltar que, para as malocas da
Serra da Lua e Taiano, a cidade dista menos de cem
quilômetros, com estradas que atravessam toda a extensão
destas duas regiões. Isto representa possibilidade
cotidiana de transporte, tanto nos carros dos fazendeiros,
como no ônibus de linha que liga Boa Visa a Taiano e
Bonfim. Semanalmente chega, também, o caminhão da FUNAI.
Além disso, em função desta facilidade de acesso, muitos
Wapixana possuem bicicletas com as quais, em poucas horas
de viagem, podem alcançar Boa Vista.
A cidade oferece aos jovens a possibilidade de
trabalho que, além de resolver os próprios problemas
econômicos, são uma solução para superar descordos com os
pais, não mais resolvidos em termos rituais (ritos de
iniciação ou de passagem), como ainda acontece com as
moças.
[...]
Todo o território Wapixana, excluindo a área da
Guiana, foi invadido por fazendas de gado. No início, pelas
pertencentes aos descendentes das famílias dos primeiros
colonos do Rio Branco, e, depois em tempos mais recentes,
por outras que pertencem a comerciantes de Boa Vista.
Muitos Wapixana, desde a implantação das primeiras
fazendas, tornaram-se peões ou vaqueiros a serviços destas.
É muito difundido o costume do compadrio entre
fazendeiros e índios. Assim, os Wapixana tornaram-se
"parentes" desses fazendeiros, com todas as conseqüências
que já vimos nos outros povos. Também usa-se, para obter
mão-de-obra barata, pedir os filhos dos índios para serem
criados nas fazendas.
[...]
O modelo de relação trabalhador-empregador que os
empresários e fazendeiros trouxeram do sul do Brasil, nada
tem a ver com a relação fazendeiro local-índio, a qual os
Wapixana tinham se acostumado e se acomodado. Agora são
fazendas de tipo "capitalista" e, assim, também a relação
de produção tem que ser deste tipo. Os índios não entendem,
mas percebem que algo mudou, como nos confirmou um velho
Wapixana da maloca de Malacacheta: "onde é que se viu
alguém cultivar capim no lavrado"?
[...]
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66
É um tipo de invasão diferente dos fazendeiros e
os índios geralmente convivem de modo pacífico com esses
colonos. O surgimento de novos povoados acaba atraindo os
Wapixana e muitos abandonam as malocas para morar no meio
dos brancos.
Surge incontroversa a necessidade de consulta a
todas as comunidades envolvidas na demarcação. O estágio de
aculturamento talvez tenha avançado de tal maneira que não mais
interessa o total isolamento do povo indígena, de forma a
viabilizar a vida como em tempos ancestrais. Não cumprir o dever
de consulta pode vir a provocar maior lesão aos direitos
humanos, pois parte-se da premissa errônea de que todas as
comunidades desejam o isolamento.
NULIDADE DO PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO, POR
VIOLAÇÃO DOS DECRETOS Nº 22/91 E 1.775/96, CONSIDERADO O FATO DE
O RELATÓRIO DO GRUPO INTERDISCIPLINAR TER SIDO ASSINADO POR UMA
ÚNICA PESSOA, A ANTROPÓLOGA MARIA GUIOMAR DE MELO, REPRESENTANTE
DA FUNAI
As regras concernentes à designação de grupo
técnico para elaboração de estudos sobre área a ser demarcada
estavam previstas no artigo 2º do Decreto nº 22/91, então
vigente quando iniciados os trabalhos de demarcação. Eis a
íntegra do dispositivo:
Art. 2º A demarcação das terras tradicionalmente
ocupadas pelos índios será precedida de identificação por
Grupo Técnico, que procederá aos estudos e levantamentos, a
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67
fim de atender ao disposto no § 1º do art. 231 da
Constituição.
§ 1º O Grupo Técnico será designado pelo órgão
federal de assistência ao índio e será composto por
técnicos especializados desse órgão que, sob a coordenação
de antropólogo, realizará estudos etnohistóricos,
sociológicos, cartográficos e fundiários necessários.
§ 2º O levantamento fundiário de que trata o § 1º,
caso seja necessário, será realizado conjuntamente com o
órgão federal ou estadual específico.
§ 3º O grupo indígena envolvido participará do
processo em todas as suas fases.
§ 4º Outros órgãos públicos, membros da comunidade
científica ou especialistas sobre o grupo indígena
envolvido, poderão ser convidados, por solicitação do Grupo
Técnico, a participar dos trabalhos.
§ 5º Os órgãos públicos federais, estaduais e
municipais devem, no âmbito de suas competências, e às
entidades civis é facultado, prestar, perante o Grupo
Técnico, informações sobre a área objeto de estudo, no
prazo de trinta dias contados a partir da publicação do ato
que constituir o referido grupo.
§ 6º Concluídos os trabalhos de identificação, o
Grupo Técnico apresentará relatório circunstanciado ao
órgão federal de assistência ao índio, caracterizando a
terra indígena a ser demarcada.
§ 7º Aprovado o relatório pelo titular do órgão
federal de assistência ao índio, este o fará publicar no
Diário Oficial da União, incluindo as informações recebidas
de acordo com o § 5º.
§ 8º Após a publicação de que trata o parágrafo
anterior, o órgão federal de assistência ao índio
encaminhará o respectivo processo de demarcação ao Ministro
da Justiça que, caso julgue necessárias informações
adicionais, as solicitará aos órgãos mencionados no § 5º
para que sejam prestadas no prazo de trinta dias.
§ 9º Aprovando o processo, o Ministro da Justiça
declarará, mediante portaria, os limites da terra indígena,
determinando a sua demarcação.
§ 10. Não sendo aprovado o processo demarcatório,
o Ministro da Justiça devolvê-lo-á para reexame, no prazo
de trinta dias.
Pois bem, para a demarcação da Reserva Raposa
Serra do Sol, veio a ser publicada a Portaria nº 1.141, de 6 de
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68
agosto de 1992, designando o Grupo Técnico Interinstitucional.
Não foi possível localizar a íntegra da Portaria, mas, no
relatório sobre a Proposta de Demarcação da Área Indígena Raposa
Serra do Sol, consta o seguinte (folha 425, volume 2):
Pelas Portarias N. 1.141/92 de 06/08/92, N.
1.285/92 de 25.08.92, N. 1.375/92 de 08.09.92 e N. 1.553/92
DE 08.10.92 (em anexo), o Presidente da FUNAI criou um
grupo técnico interinstitucional, com a finalidade de
identificar e realizar o levantamento fundiário da ÁREA
INDÍGENA RAPOSA SERRA DO SOL. O grupo de técnico foi
constituído por:
1. Funcionários da FUNAI (Fundação Nacional do
Índio)
¾ MARIA GUIOMAR DE MELO (antropóloga);
¾ ZENILDO DE SOUZA CASTRO (técnico em
agrimensura);
¾ ANTÔNIO DE PAULA NOGUEIRA NETO;
¾ MANOEL REGINALDO TAVARES (engenheiros
agrônomos), e;
¾ OZIRES RIBEIRO SOARES (técnicos
agrícolas).
2. Funcionários do INCRA (Instituto Nacional de
Reforma Agrária)
¾ NILTON SÉRGIO MARTINS COSTA DE FREITAS
(técnico agrícola).
3. Funcionários da SEIMAJUS (Secretaria Estadual
de Meio Ambiente, Interior e Justiça) do Estado de Roraima
¾ ROBÉRIO BEZERRA DE ARAÚJO (Secretário);
¾ ANTÔNIO HUMBERTO BEZERRA DE MATOS;
¾ LUIS ALFREDO MENDES DE SOUZA;
¾ GERÔNCIO GOMES TEIXEIRA;
¾ DORVAL COSTA JÚNIOR;
¾ VAGNER AMORIM DE SOUZA, e;
¾ MEILDES FABRÍCIO LEMOS (técnicos
agrícolas).
4. Pesquisadores da USP (Universidade de São
Paulo)
¾ PAULO JOSÉ BRANDO SANTILLI (antropólogo),
e;
¾ JOSÉ JULIANO CARVALHO (economista).
5. Membro do CIMI (Conselho Indígena Missionário)
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69
¾ FELISBERTO ASSUNÇÃO DAMACENO (advogado).
6. Membro da Diocese de Roraima
¾ ANA PAULA SOUTO MAIOR (advogada)
7. Lideranças Indígenas indicadas pelo CIR
(Conselho Indígena de Roraima)
¾ JOSÉ ADALBERTO DA SILVA
¾ JUCELINO JOAQUIM MARQUES, MARTINS DE
OLIVEIRA (representantes das comunidades
indígenas da região da serra)
¾ ALCIDES CONSTANTINO (representante das
comunidades indígenas da região do baixo
Cotingo)
¾ MELQÍADES PERES NETO (representante das
comunidades indígenas da região do
Surumu)
¾ SEVERINO AMARO
¾ JOÃO BATISTA RUFINO DE SOUZA
(representantes das comunidades indígenas
da região da Raposa)
¾ ODILON ERNESTO MALHEIROS
¾ DONALDO SOUZA MARCULINO, e;
¾ AUGOSTINHO PAULINHO.
Consoante registrado no laudo da Comissão de
Peritos Judiciais, o relatório desse Grupo Técnico é o documento
a embasar e justificar todas as decisões do Governo Federal que
deram origem ao Decreto de Homologação da Demarcação da Terra
Indígena Raposa Serra do Sol. "Tudo girou em torno do resultado
dos trabalhos desse grupo técnico interinstitucional, que
conteria a participação de instituições que possuem interesses
no caso" (folha 1518, volume 6).
Segundo os peritos, a Funai deu "muita ênfase ao
aspecto interinstitucional do Relatório do Grupo Técnico" e ao
fato de terem "seguido à risca todas as normas administrativas e
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70
jurídicas", ao rebater o laudo antropológico apresentado pelo
Governo do Estado, em 1993, argumentando (folha 1518, volume 6):
"(...) 4. os trabalhos realizados no âmbito
administrativo do Grupo de Trabalho instituído pela FUNAI,
envolvendo além de quadros especializados da FUNAI e de
outros órgãos da administração federal, técnicos do governo
estadual de Roraima e pesquisadores de universidades
públicas, seguiram à risca todas as normas administrativas
e jurídicas que tratam do procedimento de identificação e
demarcação de áreas indígenas; (...)"
Pela regra do § 6º do Decreto nº 22/91,
"concluídos os trabalhos de identificação, o Grupo Técnico
apresentará relatório circunstanciado ao órgão federal de
assistência ao índio, caracterizando a terra indígena a ser
demarcada."
Além disso, em 8 de janeiro de 1996, foi
publicado o Decreto nº 1.775/1996, contendo novas regras sobre o
procedimento administrativo de demarcação das terras indígenas,
dando outras providências e revogando normas anteriores. A
exigência da designação do grupo técnico especializado, porém,
foi mantida com a finalidade de realizar estudos complementares.
Confiram:
Art. 1º As terras indígenas, de que tratam o art.
17, I, da Lei nº 6.001, de 19 de dezembro de 1973, e o art.
231 da Constituição, serão administrativamente demarcadas
por iniciativa e sob a orientação do órgão federal de
assistência ao índio, de acordo com o disposto neste
Decreto.
Art. 2º A demarcação das terras tradicionalmente
ocupadas pelos índios será fundamentada em trabalhos
desenvolvidos por antropólogo de qualificação reconhecida,
que elaborará, em prazo fixado na portaria de nomeação
baixada pelo titular do órgão federal de assistência ao
índio, estudo antropológico de identificação.
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71
§ 1º O órgão federal de assistência ao índio
designará grupo técnico especializado, composto
preferencialmente por servidores do próprio quadro
funcional, coordenado por antropólogo, com a finalidade de
realizar estudos complementares de natureza etno-histórica,
sociológica, jurídica, cartográfica, ambiental e o
levantamento fundiário necessários à delimitação.
[...]
§ 4º O grupo técnico solicitará, quando for o
caso, a colaboração de membros da comunidade científica ou
de outros órgãos públicos para embasar os estudos de que
trata este artigo.
§ 5º No prazo de trinta dias contados da data da
publicação do ato que constituir o grupo técnico, os órgãos
públicos devem, no âmbito de suas competências, e às
entidades civis é facultado, prestar-lhe informações sobre
a área objeto da identificação.
§ 6º Concluídos os trabalhos de identificação e
delimitação, o grupo técnico apresentará relatório
circunstanciado ao órgão federal de assistência ao índio,
caracterizando a terra indígena a ser demarcada.
Pois bem, segundo o autor, no caso em exame, o
Relatório do Grupo Interdisciplinar foi assinado por uma única
pessoa, a antropóloga Maria Guiomar de Melo, representante da
Funai. Afirma demonstrar o fato a parcialidade e a consequente
nulidade do procedimento administrativo. Assevera não se poder
supor estar tal técnica representando todo o grupo, tampouco
havendo prova do credenciamento. Argumenta não ter a maioria dos
designados pela portaria tomado ciência do relatório. Alguns
desconheciam, até mesmo, a respectiva nomeação. Afirma que os
dois representantes do Estado de Roraima, por exemplo, não eram
técnicos e sim motoristas.
A circunstância de o estudo antropológico ter
sido subscrito por apenas um perito é incontroversa. Pude
Pet 3.388 / RR
72
constatar pelo documento de folha 423 a 548. Confiram ainda o
item 32 do parecer do Ministério Público (folha 399, volume 2):
[...]
32. O estudo antropológico prescrito pelo ato
normativo foi realizado por profissional habilitado para
tanto, não sendo legítimo presumir seja parcial pelo só ato
de haver sido assinado por um único perito quando a lei não
exige de modo diverso. Ali, está demonstrada não só a posse
tradicional e imemorial dos grupos indígenas sobre toda a
extensão da área, como a necessidade de demarcação de faixa
contínua de terras, de maneira a preservar a cultura
indígena nos moldes já descritos.
[...]
No voto do relator, está consignado:
[...]
111. O que importa para o deslinde da questão é
que toda a metodologia propriamente antropológica foi
observada pelos profissionais que detinham competência para
fazê-lo: os antropólogos Maria Guiomar Melo e Paulo Brando
Santilli. Este último indicado permanentemente prestigiado
pela Associação Brasileira de Antropologia, de cujos
quadros societários faz parte como acatado cientista. Ele
foi o responsável pela confecção do parecer antropológico
que, a partir dos estudos e levantamentos feitos pela Dra.
Maria Guiomar (ela também um destacado membro da Associação
Brasileira de Antropologia), serviu de base para os
trabalhos demarcatórios em causa, assinando-o
solitariamente, como estava autorizado a fazê-lo (tanto
quanto a Dra. Guiomar). Afinal, é mesmo a profissional da
antropologia que incumbe assinalar os limites geográficos
de concreção dos comandos constitucionais em tema de área
indígena. O que se lhe mostra impertinente ou estranho é
laborar no plano de uma suposta conveniência da busca de um
consenso entre partes contrapostas e respectivos
interesses, que ele, Paulo Santili, acertadamente não
intentou.
[...]
Com base no relatório da Câmara dos Deputados,
aponta-se a nulidade do laudo em razão de ofensa ao princípio da
impessoalidade. É que apenas integrantes do Conselho Indígena de
Pet 3.388 / RR
73
Roraima haveriam composto o Grupo Técnico. Embora tenham
representatividade, este não abrange todos os índios, sobretudo
aqueles que defendem a demarcação de forma não contínua. Abaixo
trecho sobre o tema (folha 6556, volume 25):
Pode-se constatar que a participação do Conselho
Indígena de Roraima – CIR e do Conselho Indigenista
Missionário – CIMI foi decisiva na elaboração do Laudo. Com
efeito, a análise da situação fundiária da Raposa/Serra do
Sol foi baseada em levantamento realizado pelo Conselho
Indígena de Roraima – CIR. O texto chega mesmo a declarar
que "foi visando ampliar seu campo de atuação política e
defender sua terra, que o CIR encaminhou ao GT a pesquisa
sobre a situação fundiária da AI RAPOSA/SERRA DO SOL".
Outrossim, o parecer jurídico do Laudo foi escrito pelo
advogado Sr. Felisberto Assunção Damaceno, membro do CIMI.
A elaboração de peças centrais do Laudo
Antropológico por essas entidades compromete a isenção do
trabalho, em prejuízo da impessoalidade da Administração
Pública. [...]
A participação apenas do Conselho Indígena de
Roraima mostra-se inquestionável. Confiram trecho do laudo
antropológico (folha 459, volume 2):
[...]
O levantamento resultou na coleta de dados sobre
83 malocas, 181 posses, na sua maioria fazendas, 1 vila e 3
pontos de apoio aos garimpos dos rios Mau, Cotingo e Quino.
Foi possível coletar informações abrangentes sobre a
ocupação indígena e a dos posseiros. Contudo as informações
relativas aos garimpos não foram suficientes para permitir
uma análise mais global da situação.
A equipe de trabalho se constituiu de 4 membros do
CIR e uma advogada contratada para ser responsável pela
coleta de dados e futura análise dos mesmos. Além dessa
equipe volante, este trabalho contou como o apoio do
assessor jurídico da Diocese e do CIR e sua secretaria no
armazenamento dos dados coletados.
No laudo, elaborado por ordem do Juízo Federal,
os peritos assim se pronunciaram (folhas 1519 e 1520, volume 6):
Pet 3.388 / RR
74
O Conselho Indígena de Roraima (CIR), sem dúvida,
representa parcela dos índios dessa região. O CIR defende,
como sempre defendeu, a demarcação, com a retirada dos nãoíndios
da reserva. Porém, forçoso é reconhecer que existem
outras organizações indígenas que também representam parte
desses índios, tais como, a Associação dos Povos Indígenas
de Roraima (APIR), a Sociedade de Defesa dos Índios Unidos
do Norte de Roraima (SODIURR), a Associação Regional
Indígena do Rio Kinõ ao Monte de Roraima (ARIKON), o
Conselho dos Povos Indígenas Ingaricó (COPING), e a Aliança
de Integração e Desenvolvimento das Comunidades Indígenas
de Roraima (ALIDICIR).
[...]
O grupo de trabalho interinstitucional criado pela
Portaria nº 1.141/92 contém dez (10) índios, todos
indicados pelo CIR. Compor um grupo de trabalho com a
participação indígena indicada apenas pelo CIR é, no
mínimo, parcial e injusto, por não conter representação das
outras instituições e dos outros índios não favoráveis à
demarcação, de forma contínua. Pelo menos no que diz
respeito à representação indígena, a escolha dos membros da
comissão foi tendenciosa ao favorecer apenas um dos lados
da discussão.
A Comissão de Peritos também registrou ter tido a
oportunidade de conversar com integrantes do Grupo Técnico
Institucional, relatando o seguinte (folha 1520, volume 6):
[...] a Comissão de Peritos teve a oportunidade
de conversar com o Sr. Antônio Humberto Bezerra de Matos
(um dos técnicos agrícolas, representante do Governo do
Estado) que afirmou não ser técnico agrícola e que não
tomou conhecimento de sua nomeação pela Portaria nº 1.141,
e nunca participou de atividade alguma relativa à
demarcação em questão. Chegou a afirmar que nunca esteve na
área Raposa Serra do Sol. A Comissão recebeu a visita do
Sr. Gerôncio Gomes Teixeira (outro componente do GT) que
informou que não era técnico agrícola e sim, Auxiliar
Operacional Agropecuário e que esteve na área Raposa/Serra
do Sol conduzido pelo motorista Maíldes e acompanhando um
"doutor de Brasília". Seu trabalho foi única e
exclusivamente "medir alguns currais e contar algumas
árvores" a mando do "doutor", em fazendas da região. Ficou
surpreso ao saber que fazia parte de um Grupo Técnico
Interinstitucional de tanta relevância para o Estado de
Roraima e que representaria o Governo do Estado, nessa
Comissão. A Comissão de Peritos conversou também com os
Senhores Vagner Amorim de Souza e Maíldes Fabrício Lemos
(também pertencentes ao GT, como técnicos agrícolas) que
afirmaram não serem técnicos agrícolas e, sim, motoristas,
e que não sabiam que faziam parte do Grupo Técnico. A única
Pet 3.388 / RR
75
atividade de ambos no processo de demarcação foi relativa à
responsabilidade de conduzir algumas pessoas à área
pretendida.
Eis o que consignado, nesse ponto, no voto do
ministro Carlos Ayres Britto, relator:
[...]
108. No ponto, anoto que os trabalhos de
demarcação da área indígena Raposa/Serra do Sol começaram
em 1977, data a partir da qual o tema ganhou todas as
tintas dos chamados "fatos públicos e notórios". Daí
porque, em acréscimo a essa publicidade natural, o estudo
de 1991/1992 foi sinteticamente publicado no Diário Oficial
da União já em abril de 1993, tudo conforme os dizeres do §
7º do art. 2º do Decreto 22/91 e como decorrência do
aforismo tempus regit actum e do princípio processual da
instrumentalidade das formas. Tempo mais que suficiente
para que todas as partes e demais interessados se
habilitassem no procedimento e ofertassem eventuais
contraditas, porquanto o primeiro despacho do Ministro da
Justiça Nelson Jobim somente se deu em 1996 (despacho nº
80/96, excluindo da área a demarcar parte das terras
atualmente reivindicadas por arrozeiros). Noutros termos,
nulidade haveria tão-somente se os interessados requeressem
e lhes fossem negados pela Administração Federal seus
ingressos no feito, o que jamais ocorreu.
109. O mesmo é de se dizer quanto à participação
de qualquer das etnias indígenas da área: Ingarikó, Macuxi,
Patamona, Wapichana e Taurepang. Sendo que somente se
apresentaram para contribuir com os trabalhos demarcatórios
os Makuxi, filiados ao Conselho Indígena de Roraima – CIR.
Os demais indígenas, tirante os Ingarikó, atuaram diversas
vezes nos autos com cartas e petições. Todos forneciam
informações e nenhum deles subscreveu o relatório nem o
parecer antropológico, elaborados pela antropóloga Maria
Guiomar Melo, servidora da FUNAI e pelo Prof. Paulo
Santilli, respectivamente.
110. Também não vejo como causa de nulidade o fato
de o advogado responsável pelo parecer jurídico (Felisberto
Assunção Damasceno) haver sido indicado pelo Conselho
Indigenista Missionário (CIMI). Tal parecer não foi além de
sua natureza opinativa e passou pelo crivo da Presidência
da FUNAI, da Consultoria Jurídica do Ministério da Justiça
e de outras instâncias administrativas em sucessividade
processual endógena, como, v.g., o Consultor Jurídico da
Casa Civil da Presidência da República. É o que também
penso quanto à alegada não participação de membros do grupo
oficial de trabalho na confecção de laudo antropológico,
bem assim no que tange ao fato de servidores
administrativos, devidamente treinados, efetivarem
levantamentos de índole meramente censitária de pessoas e
bens.
Pet 3.388 / RR
76
[...]
Relativamente à Sociedade de Defesa dos Índios
Unidos do Norte de Roraima - SODIUR, entidade que, conforme os
fatos narrados no laudo produzido em Juízo, não foi ouvida no
curso do processo demarcatório, vale transcrever trecho de
reportagem veiculada no sítio eletrônico do Jornal "Folha de São
Paulo", em 27 de janeiro de 2009:
Índios invadem sede da Funai em Boa Vista e
Dourados
Índios invadiram nesta terça-feira prédios da
Funai em Boa Vista (RR) e Dourados (MS). Em Boa Vista,
índios ligados à Sodiur (Sociedade de Defesa dos Índios
Unidos do Norte de Roraima) entraram no final da tarde na
sede do órgão federal.
Segundo o presidente da Sodiur, Silvio da Silva,
os índios invadiram o prédio em protesto contra a possível
retirada dos habitantes não-índios do interior da terra
indígena Raposa/Serra do Sol. O grupo é favorável à
permanência dos arrozeiros no local. O caso aguarda
definição do STF (Supremo Tribunal Federal)20.
Verificam-se, portanto, irregularidades no
tocante ao procedimento administrativo visando a definir as
terras indígenas. Não se sabe ao certo: a) as razões pelas quais
o laudo foi subscrito por apenas um integrante do grupo, a Dra.
Maria Guiomar de Melo - no voto do relator, está consignada a
participação do antropólogo Paulo Santilli); (b) se todos
20
http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u495227.shtml. Acessado
em 18 de fevereiro de
2009.
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efetivamente tiveram ciência de que integravam o grupo; (c) se
foram ouvidas todas as etnias interessadas.
PREJUÍZOS À ECONOMIA DO ESTADO DE RORAIMA CASO A
DEMARCAÇÃO DA RESERVA INDÍGENA OCORRA EM ÁREA CONTÍNUA
De acordo com informações colhidas do memorial da
União, a Reserva Raposa Serra do Sol corresponde a 7,79% do
território do Estado de Roraima. Se englobadas todas as terras
indígenas pertencentes ao referido ente, chega-se ao patamar de
46% do território estadual. Segundo alega a União, ainda assim a
área não abrangida pelas reservas é mais extensa do que Estados
como Alagoas, Espírito Santo e Rio de Janeiro.
Com fidelidade e revelando que a controvérsia
envolve, na maior parte, indígenas aculturados, destaca o fato
de ali habitar a terceira maior população indígena do país,
produtora de 50 toneladas de milho, 10 toneladas de arroz e 10
toneladas de feijão anuais bem como proprietária de 35.000
cabeças de gado, com venda de 3.000 bezerros ao ano (folha 9806,
volume 39). Afirma contribuírem os indígenas com a economia
estadual.
Ressalta representarem as atividades agrícola e
pecuária apenas 3,8% do Produto Interno Bruto do Estado de
Roraima, ficando atrás, portanto, da Administração Pública -
Pet 3.388 / RR
78
58,2% -, da construção civil - 6,0% - e do comércio - 9,3%
(folha 9806, volume 39).
É certa a existência de fazendas de arroz no
local. No relatório da Câmara dos Deputados, encontra-se
consignado (folha 6562, volume 25):
[...] A área da reserva inclui fazendas
regularmente tituladas pelo INCRA, ou cujo domínio foi
assegurado em sentença judicial transitada em julgado. A
delicada situação fundiária da Raposa/Serra do Sol envolve
ainda a ocupação lícita de terras por não-índios que
remonta a meados do século XIX, conforme destacado pelo
Ministro Maurício Corrêa na ADI 1.512/RR. O Ministro aponta
que a Lei nº 601, de 1850, regulamentada pelo Decreto nº
1.818, de 1854, deu legitimação à posse dos que ali detém a
terra, bem assim títulos de propriedade foram legitimamente
expedidos pelo Estado do Amazonas quando a área ainda
estava sob sua jurisdição (período anterior a 1943). Esses
proprietários, entretanto, viram-se surpreendidos pela
inclusão de suas terras na área pretendida pela FUNAI, em
flagrante violação de direitos adquiridos e da coisa
julgada.
No laudo pericial, há alusão ao tema (folhas 1528
e 1529, volume 6):
[...]
A economia do Estado de Roraima é ainda frágil e
altamente dependente dos recursos federais. As novas
perspectivas com a produção de grãos no lavrado (savanas) e
de arroz irrigado nas várzeas estão a se apresentar como
possíveis soluções para o problema econômico do Estado.
Apesar das atuais atividades econômicas (arroz irrigado,
pecuária e grãos) do Estado de Roraima não estarem ainda
contribuindo de forma significativa para o desenvolvimento
regional nem representarem fonte importante de recursos
públicos para o governo estadual.
Na falta de uma política agropecuária consistente
por parte do Estado de Roraima, devido à instabilidade da
estrutura fundiária e às ameaças de desapropriação pela
FUNAI, a atividade pecuária tem decrescido
sistematicamente.
A evolução histórica da produção de arroz na
região Raposa Serra do Sol demonstra que essa atividade vem
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ganhando força econômica, ao longo dos últimos anos, além
de apresentar alta produtividade.
[...]
Independentemente de existirem áreas relativamente
equivalentes para a produção agropecuária fora das áreas
indígenas (principalmente Raposa Serra do Sol), a
demarcação em área contínua traria fortes reflexos
imediatos na produção agropecuária do Estado de Roraima,
comprometendo um longo trabalho de planejamento agrícola
realizado por órgãos públicos de pesquisa agropecuária, nos
últimos anos.
A situação gerada pela demarcação em área contínua
pode comprometer irreversivelmente a possibilidade de
futura expansão da fronteira agrícola que poderia gerar
alto crescimento econômico para o Estado, com reflexos no
número de empregos e na oferta de alimentos abundantes e
relativamente baratos para a Região Norte. Com o bloqueio
de grandes áreas de savana atualmente utilizadas
comercialmente pela agropecuária na Terra Indígena Raposa
Serra do Sol, poderia gerar de imediato forte pressão para
implantação de novas pastagens em áreas florestais das
bacias dos rios Uraricoera e Amajarí, por exemplo, bem como
no Sul do Estado, causando, sem dúvida, elevados índices de
desmatamentos.
A homologação da Área Indígena Raposa Serra do
Sol, em área contínua, poderia gerar um êxodo rural,
principalmente para a cidade de Boa Vista, de:
a. não índios empregados das propriedades agropecuárias que
seriam desativadas;
b. não índios ligados a outras atividades comerciais e
urbanas;
c. índios que estavam empregados nas atividades
agropecuárias da região; e
d. índios que, de alguma forma, dependiam de atividades
conjuntas com não índios.
Essa migração poderia agravar os atuais problemas
de inchamento urbano da capital do Estado, devido à
impossibilidade dessas pessoas serem absorvidas pela frágil
economia atualmente existente em Roraima.
A União, apesar de reconhecer o grande
crescimento geográfico das fazendas de arroz, afirma ter a
produção dessa cultura se mantido estável desde 1992, não
caracterizando atividade imprescindível ao desenvolvimento
econômico do Estado (folha 9807, volume 39). Aduz estar a
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80
atividade agrária impulsionada por incentivos fiscais, o que
afasta prejuízo na arrecadação. Além disso, assevera ser
atividade mecanizada, o que não implica a perda de empregos.
Sustenta existirem apenas sete arrozeiros questionando ainda a
legalidade da demarcação.
No entanto, como antes salientado, a própria
União reconhece ser a área de lavoura na região demarcada sete
vezes maior, em extensão, do que a observada em 1992. Destaca
grave desrespeito à legislação ambiental.
Um ponto que merece ser rechaçado é o de que a
demarcação em ilhas implica ofensa a tratados de direitos
humanos, que garantem a proteção a terras indígenas. Os direitos
indígenas são distintos nos países americanos. Nos Estados
Unidos, por exemplo, permite-se a ocorrência de um sistema
jurídico próprio dentro das comunidades indígenas. Há notícia de
existirem mais de 150 desses sistemas. E o país reconhece as
decisões tomadas no âmbito das tribos, inclusive com
possibilidade de execução21 nas Cortes Americanas.
Transcrevo trecho do discurso de Santiago A.
Cantón, Secretário Executivo da Comissão Interamericana de
Direitos Humanos, em que abordou as conclusões de caso julgado
pela Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre a demarcação
das terras Ianomâmi:
21
http://www.law.harvard.edu/students/orgs/hrj/iss14/williams.shtml#Heading388.
Acessado em 15
de janeiro de 2009.
Pet 3.388 / RR
81
No que se refere aos casos já decididos, há dois
especialmente ilustrativos. O caso ianomâmi, decidido em
1985, fixou algumas referências iniciais na jurisprudência
da Comissão sobre a relação entre a proteção dos direitos
humanos e o meio ambiente. A queixa se referia à exploração
de recursos naturais na região amazônica, inclusive à
abertura de uma estrada em propriedades que
tradicionalmente haviam estado em poder dos ianomâmi. Com
a estrada sobreveio a invasão de operários, mineiros e
colonizadores, o deslocamento de comunidades e a introdução
de doenças contra as quais os ianomâmi careciam de
mecanismos de defesa; as conseqüências foram devastadoras.
As leis nacionais previam a demarcação das terras indígenas
ancestrais, mas no caso dos ianomâmi isso não ocorreu. A
Comissão recomendou a demarcação do território como medida
essencial para remediar as violações. Ademais, a Comissão
recomendou que os programas destinados ao atendimento das
comunidades fossem realizados após consulta aos afetados.
O dever de adotar medidas preventivas razoáveis nos casos
de ameaça à vida e à integridade física e de consultar os
afetados quanto à formulação e à aplicação da política
pública são os dois princípios essenciais articulados nesse
relatório. 22
Como se percebe, há sim a obrigação de o país
demarcar as terras indígenas – o que, aliás, é imposto pela
própria Constituição Federal –, mas não existe um modelo
demarcatório claramente definido, contínuo ou em ilhas, nem a
exigência de se ter como válido um processo que apresentou
vícios, desde a elaboração do laudo antropológico.
Cumpre asseverar ser direito humano a proteção da
propriedade privada. O simples reconhecimento de que terras
privadas, intituladas pelo Estado (gênero), cuja legalidade dos
títulos foi apurada em processo judicial transitado em julgado,
nunca pertenceram aos respectivos proprietários poderá levar o
Brasil a responder no cenário internacional. Eis o artigo 21 da
22 Trecho da EXPOSIÇÃO DO EMBAIXADOR SANTIAGO A. CANTÓN, SECRETÁRIO
EXECUTIVO DA COMISSÃO
INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, SOBRE O TEMA "DIREITOS HUMANOS E
MEIO AMBIENTE", AG/RES.
1819 (XXXI-O/01) (Sessão da Comissão de Assuntos Jurídicos e Políticos
de 11 de abril de 2002)
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82
Convenção Americana sobre Direitos Humanos/Pacto de São José da
Costa Rica:
[...]
Artigo 21º - Direito à propriedade privada 1. Toda
pessoa tem direito ao uso e gozo dos seus bens. A lei pode
subordinar esse uso e gozo ao interesse social.
2. Nenhuma pessoa pode ser privada de seus bens,
salvo mediante o pagamento de indenização justa, por motivo
de utilidade pública ou de interesse social e nos casos e
na forma estabelecidos pela lei.
3. Tanto a usura como qualquer outra forma de
exploração do homem pelo homem devem ser reprimidas pela
lei.
[...]
À luz dessas observações, novamente ressalto a
necessidade de se fomentar o processo de elementos fáticos
imprescindíveis ao deslinde, que deveriam ter sido colhidos
durante a instrução. Sou favorável à demarcação correta. E esta
somente pode ser a resultante de um devido processo legal,
mostrando-se imprópria a prevalência, a ferro e fogo, da óptica
do resgate de dívida histórica, simplesmente histórica - e
romântica, portanto, considerado o fato de o Brasil, em algum
momento, haver sido habitado exclusivamente por índios. Os dados
econômicos apresentados demonstram a importância da área para a
economia do Estado, a relevância da presença dos fazendeiros na
região.
Difícil é conceber o chamado fato indígena, a
existência de cerca de dezenove mil índios em toda a extensão
geográfica da área demarcada - uma área doze vezes maior que o
Pet 3.388 / RR
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Município de São Paulo23, em que vivem cerca de onze milhões de
habitantes. Para mim o enfoque até aqui prevalecente soa
desproporcional a discrepar, a mais não poder, da razoabilidade.
E tudo, repito à exaustão, resultando de um processo
demarcatório cujos elementos coligidos se mostram viciados, como
se não vivêssemos em um Estado de Direito.
Aliás, surge paradoxo no que se assenta que a
posse indígena a ser reconhecida e preservada é a existente à
data da promulgação da Constituição - premissa de todo harmônica
com o § 1º do artigo 231 nela contido - e, em passo seguinte,
desconhecendo-se o envolvimento de áreas limitadas, conclui-se
pela subsistência da demarcação contínua, com limitações à
liberdade de ir e vir de brasileiros, em verdadeiro apartheid,
com o atropelo de situações devidamente constituídas, quer por
títulos de propriedade reconhecidos como de bom valor pelo
Estado, quer por decisão judicial. E tudo isso ocorre com
abrangência incomum porque envolvidos índios e descendentes de
índios aculturados e não povos indígenas em condições
primitivas. A todos os títulos, tem-se, de um lado, situação
inusitada – grande área na qual o cidadão comum não poderá
entrar – e, de outro, adoção de critério que extravasa em muito
o que concebido pelo Constituinte de 1998.
23
http://www.estadao.com.br/interatividade/Multimidia/ShowEspeciais!destaque.action?destaque.idEsp
eciais=631
. Acessado em 15 de janeiro de 2009.
Pet 3.388 / RR
84
A política indigenista nacional sempre foi
dirigida à integração. A partir da colonização, passando pelo
Império e chegando aos dias atuais, isso tem sido uma constante.
Na primeira época, houve até mesmo ato do Marquês de Pombal
voltado à miscigenação, estimulando-se o estabelecimento de
relação carnal e sentimental entre portugueses e índias. Como
efeito dessa política, notou-se, com o decorrer dos anos, o
avanço intelectual de descendentes de índios. Cito o exemplo de
ex-Governadores do Estado do Amazonas. Gilberto Mestrinho é
filho de índio e Amazonino Mendes, neto. A informação está
registrada em publicação do ex-Governador de Sergipe e ex-
Ministro do Interior, de 1987 a 1990, João Alves Filho, que, por
sinal, é bisneto de índio24.
Para ter-se ideia do envolvimento de índios
aculturados, em número significativo, não bastasse a política
indigenista de integração havida desde a época de Nóbrega e
Anchieta, passando mais recentemente pelo Marechal Rondon,
constata-se a integração no campo político. O Prefeito do
Município de Normandia – Orlando Oliveira – é da etnia Macuxi. O
Prefeito do Município do Uiramutã – Eliésio Cavalcante de Lima -
também é dessa etnia. O Vice-Prefeito do Município de Pacaraima –
Albertino Dias de Souza – é da etnia Ingaricó. Das nove cadeiras
da Câmara de Vereadores no Município de Normandia, três são
24 "João Alves Filho – pronunciamentos, artigos e entrevistas
(1987-1990)". Brasília, 1990.
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85
ocupadas por descendentes de índios – Valdir Tobias, Davi Marcos
Napoleão e João Menezes da Silva Neto. Já a Câmara do Município
de Uiramutã, também contando com nove cadeiras, tem sete
vereadores cuja ascendência é indígena: Albertino Dias de Souza,
Dílson Domente Ingaricó, Eronildo Ensoro, Irmão Antonio, Manoel
Bigode, Milton e Professor Damásio. Relativamente ao Município
de Pacaraima, a Câmara, onde, do mesmo modo, existem nove
cadeiras, são descendentes de índios os vereadores Professor
Roseno e Diura Jane de Brito Tupinambá.
Como, então, em pleno século XXI, considerados os
avanços culturais de toda ordem, cogitar-se de isolamento da
população indígena, procedendo-se à delimitação territorial
contínua para afastar-se da área os não-índios? O retrocesso é
flagrante, não se coadunando com os interesses maiores de uma
nacionalidade integrada.
As lutas incessantes pela almejada unidade,
especialmente as capitaneadas por Dom Pedro II, não podem ser
olvidadas, menosprezando-se a cláusula proibitiva da distinção
presente a origem, raça, sexo, cor, idade ou quaisquer formas de
discriminação. A óptica contrária desconsidera objetivo
fundamental da República Federativa do Brasil – construir uma
sociedade livre, justa e solidária (artigo 3º).
Então, há de reconhecer-se a inteira procedência
do que bem disse o professor de Filosofia da Universidade
Pet 3.388 / RR
86
Federal do Rio Grande do Sul Denis Lerrer Rosenfield em artigo
publicado no jornal O Estado de S.Paulo de 8 de dezembro de
2008:
A homologação da terra indígena Raposa Serra do
Sol, de forma contínua ou descontínua, coloca um problema
de ordem cultural e histórica, que concerne ao processo de
formação de nosso próprio país. Na verdade, duas abordagens
se defrontam: a da demarcação contínua, procurando fechar
esse território como nação, numa economia de autosubsistência;
e a da demarcação descontínua mantendo
intercâmbio entre as populações indígena, mestiça e
branca...
... Vários pensadores e etnólogos se dedicaram
a essa questão, com rigor científico e uma visão de
integração dos indígenas à sociedade brasileira: Karl von
den Steinen, Hebert Baldus, Eduardo Galvão, Egon Schaden e
Darci Ribeiro, entre outros. Eram etnólogos com profunda
visão humanista, e não ideólogos que advogavam por um
suposto retorno a uma situação idílica e falsa de um estado
de natureza bom e harmônico. Seguiam a ciência, e não a
religião, como ocorre hoje com a política do Conselho
Indigenista Missionário (CIMI) e a orientação correlata da
FUNAI.
Então, advertiu que a demanda dos índios é por
postos de saúde e não pela volta do pajé, consignando:
A demanda do caso é por postos de saúde, com
enfermeiros, médicos e medicamentos e não pela volta do
pajé. A demanda é por uma educação que, resgatando as
tradições indígenas, ofereça a eles a possibilidade de uma
boa integração ao mundo civilizado. A demanda não é por
ausência de trabalho, mas por condições dignas de trabalho,
não tornando o indígena um novo miserável urbano. A questão
consiste numa adaptação eficaz e controlada ao mundo
civilizado, de tal maneira que cause a menor dor possível
aos indígenas e que estes possam usufruir os produtos da
sociedade ocidental, almejados por eles mesmos. Tudo
depende, evidentemente, do grau de aculturação em que se
encontrem as diferentes tribos, não devendo haver uma regra
de conduta única, mas políticas adaptadas a cada situação.
A educação dos jovens, por exemplo, é uma forma de
adaptação que se escalona no tempo e propicia, se bem
feita, uma integração harmoniosa. Uma interação
satisfatória deveria necessariamente contemplar a
integração econômico-cultural, condição de novas formas de
prestígio, auto-estima e aquisição de bens.
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INSTABILIDADE QUANTO À SEGURANÇA NACIONAL - FAIXA
DE FRONTEIRA DO BRASIL COM A VENEZUELA E GUIANA
O Plenário, no julgamento do Mandado de Segurança
nº 25.483-1/DF, relatado pelo ministro Carlos Ayres Britto,
concluiu não ser a manifestação do Conselho de Defesa Nacional
requisito de validade da demarcação de terras indígenas, mesmo
daquelas situadas em região de fronteira. Eis a ementa:
MANDADO DE SEGURANÇA. HOMOLOGAÇÃO DO PROCEDIMENTO
ADMINISTRATIVO DE DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS RAPOSA
SERRA DO SOL. IMPRESTABILIDADE DO LAUDO ANTROPOLÓGICO.
TERRAS TRADICIONALMENTE OCUPADAS POR ÍNDIOS. DIREITO
ADQUIRIDO À POSSE E AO DOMÍNIO DAS TERRAS OCUPADAS
IMEMORIALMENTE PELOS IMPETRANTES. COMPETÊNCIA PARA A
HOMOLOGAÇÃO. GARANTIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL
ADMINISTRATIVO. BOA-FÉ ADMINISTRATIVA. ACESSO À JUSTIÇA.
INADEQUAÇÃO DA VIA PROCESSUALMENTE ESTREITA DO MANDADO DE
SEGURANÇA. AUSÊNCIA DE DIREITO LÍQUIDO E CERTO.
[...]
Cabe à União demarcar as terras tradicionalmente
ocupadas pelos índios (caput do artigo 231 da Constituição
Federal). Donde competir ao Presidente da República
homologar tal demarcação administrativa. A manifestação do
Conselho de Defesa Nacional não é requisito de validade da
demarcação de terras indígenas, mesmo daquelas situadas em
região de fronteira. [...]
Mandado de Segurança parcialmente conhecido para
se denegar a segurança.
Noto não ter estado presente à sessão, conforme
noticiado no extrato de ata:
Decisão: O Tribunal, à unanimidade, conheceu em
parte do mandado de segurança e, na parte conhecida,
denegou-o, nos termos do voto do Relator. Votou a
Presidente, Ministra Ellen Gracie. Ausentes,
justificadamente, os Senhores Ministros Celso de Mello,
Pet 3.388 / RR
88
Marco Aurélio e Joaquim Barbosa. Falaram, pelos
impetrantes, o Dr. Luiz Valdemar Albrecht; pela Advocacia-
Geral da União, a Dra. Gracie Maria Fernandes Mendonça,
Advogada-Geral Adjunta e, pelo Ministério Público Federal,
o Vice-Procurador-Geral da República, Dr. Roberto Monteiro
Gurgel Santos. Plenário, 04.06.2007.
Em laudo pericial, consignou-se (folhas 1531 e
1532, volume 6):
[...]
A área Raposa Serra do Sol, no caso de ser
homologada de forma contínua, terá pouca densidade
demográfica, vasta extensão de fronteira e controle
limitado do Estado-Nação, o que poderá favorecer:
· A garimpagem ilegal;
· O contrabando;
· O narcotráfico;
· Refúgio para criminosos do Brasil, Guiana e
Venezuela;
· O surgimento de movimentos separatistas; e
· Outros ilícitos.
A diminuição do controle do Estado-Nação sobre os
destinos ambientais e estratégicos da Área do
Norte/Nordeste de Roraima, entre a serra de Pacaraima e os
cursos do Maú/Tacutu encerra questões de interesse nacional
e proteção cultural e ambiental emblemáticas, quais sejam:
i. Vasta área de rochas proterozóicas riquíssimas
em recursos minerais ainda intocados (ouro e diamante,
entre outros), e única no norte da Amazônia (vide CPRM,
1990 e DNPM- Projetos e Molibdênio de Roraima), em
fronteira trinacional (cópia anexa do mapa de áreas de
futuras prospecções, recomendada pelo relatório geológico
de 1990);
ii. Enorme espaço de biodiversidade ainda tão pouco
estudado pela sociedade brasileira, apesar de solos
predominantemente pobres e de baixa capacidade de suporte
(Schaefer, 1991), oficialmente reconhecido no documento do
MMA como a área RN024- Território Indígena (TI);
iii. São Marcos e TI Raposa Serra do Sol (Avaliação
e Identificação de ações prioritárias para conservação,
utilização, ... da Biodiversidade na Amazônia Brasileira,
1990);
iv. área de elevada importância ambiental, que
carece de medidas de proteção efetivas para sua
conservação; área de grande interesse geopolítico devido
aos problemas de limites entre a Guiana e a Venezuela.
Além disso, a possível diminuição do Estado em
área tão complexa pode configurar grave erro histórico, que
poderá suscitar futuras questões territoriais como
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processos de secessão, ou de integração, visto o ocorrido
na Revolta do Rupununi (1969), quando índios habitantes da
fronteira com o Brasil, comandados por fazendeiros, se
rebelaram contra o governo da Guyana e tentaram proclamar
um Estado independente, imediatamente sufocada pelas
autoridades de Georgetown. Existem evidências que este
movimento foi em parte promovido pela Venezuela como forma
de pressão em sua disputa territorial pela margem esquerda
do Rio Essequibo.
Opinião semelhante é a do Comandante da Amazônia,
General Augusto Heleno, externada em palestra no Clube Militar.
Eis o que publicado no sítio eletrônico G1 - Globo Notícias25:
General considera terra indígena de fronteira
risco à soberania
RIO DE JANEIRO (Reuters) - O general Augusto
Heleno, comandante militar da Amazônia, classificou a
transformação da faixa da fronteira norte do país em terras
indígenas como ameaça à soberania nacional.
O militar não se mostrou preocupado em contrariar
posição do governo, que defende a homologação de terras
indígenas mesmo em regiões de fronteira, e disse que o
Exército "serve ao Estado brasileiro e não ao governo".
Em palestra sobre a defesa da Amazônia no
seminário "Brasil, ameaças a sua soberania", nesta quartafeira,
no Clube Militar, no Rio de Janeiro, o general falou
de sua preocupação com os territórios indígenas na faixa de
fronteira.
O general lembrou o compromisso brasileiro com
declaração da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre o
direito dos povos indígenas, que destaca a desmilitarização
das terras indígenas como contribuição para a paz e o
desenvolvimento econômico e social.
"Quer dizer que o problema somos nós?", perguntou
o general sob aplausos entusiasmados da platéia de
militares.
Para o general Heleno, a política indigenista está
dissociada do processo histórico do país e precisa ser
revista com urgência.
"É um caos, não funciona. Os problemas são
enormes, o alcoolismo é crescente", disse o general
referindo-se à situação de tribos amazônicas.
25 http://g1.globo.com/Noticias/Politica/0,,MUL404097-5601,00.html.
Acessado em 22 de agosto de
2008
Pet 3.388 / RR
90
"Sou totalmente a favor do índio", frisou o
general. "Não sou da esquerda escocesa que atrás de um copo
de uísque resolve os problemas brasileiros. Eu estou lá na
Amazônia vendo o que acontece com o índio brasileiro."
O general reiterou sua posição contrária à
demarcação contínua da reserva Raposa Serra do Sol, em
Roraima, que quase levou a um conflito violento entre a
Polícia Federal e arrozeiros que serão obrigados a deixar a
área.
Uma liminar do Supremo Tribunal Federal (STF)
suspendeu a operação da Polícia Federal que desalojaria os
fazendeiros de arroz que se recusam a deixar terras da
reserva. Cinco grandes plantadores de arroz possuem oito
fazendas na área indígena. O governo se propõe a pagar
indenização pelas benfeitorias.
Segundo o general, o índio também é brasileiro e
não deve ser excluído da convivência com outros
brasileiros.
"Quer dizer que na Liberdade vai ter japonês e não
japonês", comentou o general utilizando como exemplo o
bairro paulista de forte presença japonesa. "Como um
brasileiro não pode entrar numa terra só porque não é
indígena", questionou.
Além da questão indígena, o general Heleno
apresentou como ameaças à Amazônia os conflitos fundiários,
as organizações não-governamentais e os diversos ilícitos.
Em sua opinião, o desenvolvimento da Amazônia vai
acontecer independentemente da nossa vontade. "É impossível
preservar a Amazônia como lenda, floresta verde. O que
depende de nós é fazer com que (o desenvolvimento) aconteça
de forma sustentável", defendeu.
Importa verificar as preocupações veiculadas pelo
jornal O Estado de São Paulo, em editorial publicado na edição
de 22 de janeiro de 2004, intitulado "Em causa a segurança
nacional"26:
Não sabemos se o mais grave seria o fato de o
Ministério da Justiça, a Fundação Nacional do Índio (Funai)
e todos os que no governo federal se envolveram com a
iniciativa de homologar a demarcação da reserva indígena
Raposa Serra do Sol, em Roraima, conhecerem ou
desconhecerem os relatórios encaminhados ao Palácio do
26
http://clippingmp.planejamento.gov.br/cadastros/noticias/2004/1/22/noticia.101516/
Pet 3.388 / RR
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Planalto por órgãos de inteligência do governo, inclusive
das Forças Armadas, apontando o risco que aquela
demarcação, se feita em terras contínuas, poderá trazer à
segurança do País. Se os conhecessem seria um contra-senso
não atentar para suas graves advertências - a não ser que
atribuíssem valor irrisório a sua credibilidade - e, se os
desconhecessem, algo estaria muito mal na coordenação
estratégica governamental. De qualquer forma, é bem
possível que quando tiveram a idéia de levar avante essa
demarcação os próceres indigenistas do governo não
imaginavam o tamanho do problema que estavam criando, no
capítulo que diz respeito à integridade territorial e
soberania do País.
De acordo com esses relatórios reservados, a
demarcação em Roraima poderá causar "prejuízos para a
segurança do País, para o desenvolvimento da região, além
do risco de grave conflito" entre os que defendem e os que
são contrários à reserva. Por sua vez, diz o general Luiz
Lessa, presidente do Clube Militar, ex-comandante militar
da Amazônia e profundo conhecedor da região: "É um absurdo
(a demarcação contínua) porque há gerações de brasileiros
que foram criados ali e não se pode, simplesmente,
extinguir dois municípios." E acrescenta: "Ninguém é contra
a demarcação, mas que ela seja feita em ilhas, porque as
pessoas não podem ser expulsas do local onde moram e
trabalham. Está faltando visão estratégica e de segurança."
Para ele a polêmica é fruto da "pressão internacional (das
ONGs) e o governo não está atento para o fato de que aquela
área, que é de fronteira, é sensível e pode se transformar
em um ponto de conflito".
Mas não são só os setores de inteligência do
governo e militares que vêem nessa questão um risco à
segurança nacional. Também setores acadêmicos revelam a
mesma preocupação. O coordenador do Núcleo de Análise
Interdisciplinar de Políticas e Estratégias (Naippe) da
USP, Braz Araújo, e o pesquisador Geraldo Lesbat Cavagnari,
do Núcleo de Estudos Estratégicos da Unicamp, sustentam que
a demarcação da área indígena de Roraima em terras
contínuas vai pôr em risco a segurança das fronteiras
brasileiras. "Não existe outro país que permita que alguém
ou um grupo tenha soberania na faixa de fronteira",
argumenta Cavagnari, enquanto Araújo diz que "o Brasil vem
fazendo demarcação de terras indígenas sem visão
estratégica clara, apenas atendendo a demandas
demagógicas". E o cientista da USP salienta, em matéria
publicada ontem neste jornal, o que nos parece o aspecto
mais grave na questão, ao lembrar que a região amazônica
não está apenas em solo brasileiro e que há "contenciosos
territoriais entre países da região".
O ministro da Justiça resolveu criar um grupo
interministerial, para resolver o impasse gerado pela
demarcação da reserva Raposa Serra do Sol.
Trata-se de uma "força-tarefa" que já agendou
reuniões com os grupos de índios favoráveis e contrários à
homologação da reserva, com representantes do governo
estadual, da Igreja Católica, dos evangélicos, do
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Ministério Público Federal e da Ordem dos Advogados do
Brasil (OAB) - e com os produtores rurais, não terá
agendado?! Thomaz Bastos, agora, diz estar absolutamente
convencido de que "as coisas precisam ser feitas com método
e calma". Pena que o ministro não tivesse tido esse
"método" e essa "calma" antes de anunciar a homologação
demarcatória daquela reserva. Pois, como era de se prever,
esse simples anúncio fez soar os tambores de guerra em um
número cada vez maior de regiões do território nacional,
visto que todo esse território - sempre é bom lembrar - já
pertenceu integralmente às comunidades indígenas. Mato
Grosso do Sul - com 14 fazendas ocupadas por índios, uma
ordem judicial de reintegração de posse não cumprida,
invasores jurando que resistirão até a morte, repórteres
sendo recebidos à bala, etc.; Rio Grande do Sul, com
estrada bloqueada pelos índios cainguangues; Alagoas e
Bahia, com índios reivindicando áreas onde o governo
assentou populações removidas por causa da construção de
represas; enfim, parece que toda uma "demanda" reprimida -
talvez desde o Descobrimento - dos que tiveram seus
ancestrais expulsos de suas terras, pelos colonizadores
portugueses, está vindo à tona.
A União alega não haver motivos para temer
qualquer ato no sentido de se ameaçar a soberania do Brasil.
Sustenta mesmo, pasmem, dever ser vista a presença
exclusivamente indígena em área de fronteira como estratégia de
segurança nacional (folha 22), sufragando, implicitamente, a
teoria das fronteiras mortas. Afirma mostrar-se plenamente
possível a afetação ao uso das Forças Armadas, em se tratando de
área indispensável para a segurança nacional, de área
qualificada como indígena, consoante o disposto no Decreto nº
4.412/200227.
27 Art. 1o No exercício das atribuições constitucionais e legais das
Forças Armadas e da Polícia
Federal nas terras tradicionalmente ocupadas por indígenas estão
compreendidas:
I - a liberdade de trânsito e acesso, por via aquática, aérea ou
terrestre, de militares
e policiais para a realização de deslocamentos, estacionamentos,
patrulhamento, policiamento e
demais operações ou atividades relacionadas à segurança e integridade do
território nacional, à
garantia da lei e da ordem e à segurança pública;
II - a instalação e manutenção de unidades militares e policiais, de
equipamentos para
fiscalização e apoio à navegação aérea e marítima, bem como das vias de
acesso e demais medidas
de infra-estrutura e logística necessárias;
III - a implantação de programas e projetos de controle e proteção da
fronteira.
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Vejam o que versa a Portaria nº 534/2005, ato
normativo impugnado na presente ação:
[...]
Art. 5º É proibido o ingresso, o trânsito e a
permanência de pessoas ou grupos de não-índios dentro do
perímetro ora especificado, ressalvadas a presença e a ação
de autoridades federais, bem como a de particulares
especialmente autorizados, desde que sua atividade não seja
nociva, inconveniente ou danosa à vida, aos bens e ao
processo de assistência aos índios.
[...]
Eis como se pronunciou o Ministério Público
Federal sobre o tema (folhas 403 e 404, volume 2):
[...]
40. A preocupação que vem sendo externada por
comandante militar não parece, com as vênias devidas,
procedente. De há muito são demarcadas áreas indígenas em
faixa de fronteira, sendo exemplo recorrente o da área
yanomami, toda ela em faixa de fronteira, em território de
10 milhões de hectares, objeto de portaria declaratória
firmada, no início da década de 90, pelo então Ministro da
Justiça Jarbas Passarinho, eminente integrante das nossas
Forças Armadas.
41. O atual Ministro da Defesa, Nelson Jobim, por
diversas vezes, na condição de Ministro da Justiça, afirmou
que a localização de áreas indígenas em faixa de fronteira
não inviabiliza o seu reconhecimento como tal. Em despacho
de 20 de dezembro de 1996, no exame do caso específico de
que trata a presente (documento anexo), concluiu:
"4.3.5. Sobre a 'faixa de fronteira' e
parques nacionais
Ressalte-se, ainda, que a localização de
área indígena em faixa de fronteira não encontra
óbice jurídico. A Constituição Federal não
estabeleceu qualquer restrição à demarcação de
terras indígenas em faixa de fronteira.
A qualificação jurídica das terras como
'faixa de fronteira' implica limitações de
ocupação e de utilização que não guardam qualquer
incompatibilidade com o domínio privado e, muito
menos, com o público, ressalvadas as restrições
estabelecidas em lei."
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42. A concepção do Projeto Calha Norte, para a
defesa das fronteiras nacionais, é de ocupação humana. Se a
demarcação de áreas indígenas é vista como ameaça às nossas
fronteiras, das duas, uma: ou se recusa aos índios a
condição de humanos, ou se os tem por incapazes para os
fins daquele projeto, conclusões, no mínimo, inadequadas.
[...]
O ministro Menezes Direito, nas conclusões do
voto-vista formalizado, assim se manifestou:
[...]
Destarte, julgo parcialmente procedente a presente
ação popular para que sejam observadas as seguintes
condições impostas pela disciplina constitucional ao
usufruto dos índios sobre suas terras:
[...]
(v) usufruto dos índios fica condicionado ao
interesse da política de defesa nacional; a instalação de
bases, unidades e postos militares e demais intervenções
militares, a expansão estratégica da malha viária, a
exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico
e o resguardo das riquezas de cunho estratégico, a critério
dos órgãos competentes (Ministério da Defesa e Conselho de
Defesa Nacional) serão implementadas independentemente de
consulta às comunidades indígenas envolvidas ou à FUNAI;
(vi) a atuação das Forças Armadas e da Polícia
Federal na área indígena, no âmbito de suas atribuições,
fica garantida e se dará independentemente de consulta às
comunidades indígenas envolvidas ou à FUNAI;
Vale, ainda, recordar o que preceituado no § 2º
do artigo 20 da Carta Federal:
Art. 20. [...]
[...]
§ 2º A faixa de até cento e cinqüenta quilômetros
de largura, ao longo das fronteiras terrestres, designada
como faixa de fronteira, é considerada fundamental para
defesa do território nacional, e sua ocupação e utilização
serão reguladas em lei.
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Observem a necessidade de se conferir eficácia
máxima aos princípios constitucionais. O Conselho de Defesa
Nacional está previsto no artigo 91 da Lei Fundamental, tendo,
entre as competências definidas, as de: (a) propor os critérios
e condições de utilização de áreas indispensáveis à segurança do
território nacional e opinar sobre o efetivo uso, especialmente
na faixa de fronteira e nas relacionadas com a preservação e a
exploração dos recursos naturais de qualquer tipo; (b) estudar,
propor e acompanhar o desenvolvimento de iniciativas necessárias
a garantir a independência nacional e a defesa do Estado
Democrático.
Como não proferi voto na assentada em que julgado
o Mandado de Segurança nº 25.483-1/DF, quando a Corte concluiu
pela desnecessidade de oitiva do Conselho de Defesa Nacional,
não posso deixar de registrar convicção sobre a matéria.
Entre o interesse individual e o coletivo,
homenageio o coletivo. Homenageio também o perfeito
funcionamento das instituições. Se é verdade que não há norma
proibindo terras indígenas em faixa de fronteira, do mesmo modo
é verdade que, na Lei Maior, está expressamente consignada a
importância fundamental dessa faixa para a defesa do território
brasileiro. Revelava-se, pois, imprescindível a participação do
Conselho de Defesa Nacional, ante a possibilidade de existirem
instabilidades naquela área da fronteira tríplice, área em que
se encontram os territórios do Brasil, da Guiana e da Venezuela.
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É público e notório que, em razão das posições
ideológicas do atual Chefe de Estado, a Venezuela tem sido o
país latino-americano que mais causa tensões no âmbito
diplomático, não só em relação ao Brasil, mas também em relação
a diversos outros países. As regiões fronteiriças são mais
suscetíveis de turbulências e favorecem o contrabando e a
presença de narcotraficantes. Lembro o recente episódio,
ocorrido em março de 2008, em que o Exército da Colômbia invadiu
o território equatoriano e provocou a morte do porta-voz
internacional, considerado dirigente número dois do grupo
"Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia", Raúl Reyes.
E aqui não estamos tratando de qualquer ocupação
na faixa de fronteira, mas da demarcação de terras indígenas, o
que, para alguns, pressupõe a imposição de uma série de
restrições na circulação de pessoas para não prejudicar a vida
dos índios, na sua grande parte aculturados.
Essas ponderações não foram apresentadas nem aos
antropólogos nem ao Presidente da República. Talvez, até com a
manifestação do Conselho, o desfecho tivesse sido igual. Penso,
porém, que, na espécie, não se fez presente o pleno
funcionamento das instituições, o pleno funcionamento de um
Conselho que, mesmo com natureza de órgão de consulta, possui
uma razão de ser, é custeado pela sociedade, que deseja vê-lo
ativo. Não conferir essa eficácia ao dispositivo constitucional
que determinou a criação do órgão é diminuí-lo.
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Faz-se tão evidente a relevância do tema no texto
constitucional que, no § 5º do artigo 231, chega-se a autorizar
a remoção dos grupos indígenas das terras ocupadas, quando no
interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso.
A importância da manifestação do Conselho de
Defesa Nacional foi reconhecida pelo ministro Menezes Direito.
Sua Excelência, porém, considerou ter sido suprida a audiência,
não havendo nulidade. Confiram o seguinte trecho do voto-vista
proferido:
[...]
Neste caso, a farta divulgação de dados e as
manifestações elaboradas sob diversas orientações, civis e
militares, que foram levadas ao Ministro da Justiça e ao
Senhor Presidente da República, que decidiu sem audiência
do Conselho de Defesa Nacional, bem como o próprio
julgamento desta Corte, deixam em outros planos de
consideração a necessidade de ouvida.
Tal situação se reforça com o precedente
encontrado no MS nº 25.483, DJ de 14/9/2007, Relator o
Ministro Carlos Britto.
Para o futuro, entretanto, com o pronunciamento da
Suprema Corte sob a correta interpretação e aplicação do
inciso III do § 1º do art. 91, entendo que se tratando de
faixa de fronteira é recomendável que seja ouvido o
Conselho de Defesa Nacional.
[...]
Não tenho como concordar com o desfecho proposto.
Se o texto constitucional exige tal providência, esta deve ser
respeitada em todas as ocasiões, inclusive na espécie.
Vem à memória o caso Bush versus Gore, julgado
pela Suprema Corte dos Estados Unidos, definidor da eleição
presidencial que os envolvia. No precedente, decidido em 12 de
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dezembro de 2000, o Tribunal americano concluiu transgredir a
equal protection clause o sistema de contagem de votos adotado
no Estado da Flórida. Porém, ordenou que a recontagem fosse
interrompida, ante a necessidade de se respeitar o prazo fatal
para encaminhamento do resultado presente o candidato vencedor
daquele Estado, que coincidiu com a data do julgamento. Os
votos, então, jamais foram recontados. Até hoje se questiona o
desenlace da eleição. Quem, de fato, foi o real vencedor. E
critica-se a decisão da Corte que, mesmo reconhecendo a violação
constitucional, não autorizou o prosseguimento da recontagem,
potencializando aspecto temporal. Pairam dúvidas se todos os
votos foram computados.
Não podemos proceder, na espécie, da mesma
maneira, permitindo mácula no julgamento do Supremo, criando uma
nuvem cinzenta sobre a não-observância do devido processo legal.
Reconhecer a necessidade de manifestação do Conselho para o
futuro, deixando de aplicar o dispositivo constitucional na
hipótese, não pode ser admitido. Não se verifica situação de
urgência! Friso novamente que o Supremo tem a guarda da Carta
Federal e não pode despedir-se desse dever, imposto de forma
expressa pelo Constituinte de 1988, sob pena de comprometimento
da própria credibilidade.
Também sob esse ângulo, porque a Lei Maior não
foi observada no que revela como formalidade essencial a audição
do Conselho de Defesa Nacional, há de julgar-se procedente o
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pedido formulado, atentando o Supremo para a responsabilidade
que possui. É sua a última palavra sobre a Constituição, e não
deste ou daquele órgão.
OFENSA AO EQUILÍBRIO FEDERATIVO, PRESENTE O FATO
DE A ÁREA DEMARCADA OCUPAR GRANDE PARTE DO TERRITÓRIO DO ESTADO
DE RORAIMA
A Câmara dos Deputados assim deixou registrado
(folha 6542, volume 25):
[...]
5. A questão federativa
Como já vimos, Roraima está longe de desempenhar
plenamente – nos campos fundiário, econômico, fiscal e
político-institucional – o papel esperado de um Estado da
Federação. Mas os aspectos federativos do conflito em
questão vão além.
Se o Presidente da República homologar o decreto
de demarcação nos termos definidos pela FUNAI, deixará de
existir um município inteiro: Uiramutã, cujas terras ficam
integralmente dentro da Área Indígena Raposa/Serra do Sol.
Com uma população de 4.742 habitantes, conforme os
resultados do último censo do IBGE, o Município foi criado
pela Lei nº 98, de 17 de outubro de 1995.
A despeito da polêmica, a Comissão pôde constatar
que a criação do município expressou a vontade da grande
maioria da população local, composta majoritamente por
índios. Cerca de dois terços dos 1.727 eleitores então
cadastrados ali participaram do plebiscito para emancipação
da antiga vila de Uiramutã. Mais de 90% deles votaram a
favor da constituição do município, que foi reconhecida
expressamente pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2003.
Embora pobre e com baixíssima densidade
demográfica (0,59 habitante por km2), Uiramutã possui três
postos de saúde; agência bancária; serviço postal; várias
escolas indígenas (muitas, inclusive, vinculadas ao CIR),
onde os alunos estudam tanto o português como o macuxi e o
ingarikó; e um promissor programa de agricultura familiar,
implementado em conjunto com o governo federal, que ajudou
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o município a conquistar o Prêmio Mário Covas de Município
Empreendedor.
Outros dois municípios têm áreas sobrepostas às da
reserva: Normandia, ao Sul, cuja ocupação remonta a 1904; e
Paracaima, a Oeste. Nesses casos, as sedes municipais –
compreendendo toda a zona urbana – ficam fora das terras
indígenas.
Mas o problema é mais grave no Município de
Uiramutã. A União Federal não pode desrespeitar a autonomia
municipal, nem pode um ente federado simplesmente riscar do
mapa outro ente federado.
Quanto ao assunto, o Ministério Público Federal
manifestou-se deste modo:
A alegação de ofensa ao equilíbrio federativo e à
autonomia de Roraima está divorciada da realidade. A área
indígena Raposa/Serra do Sol representa pouco mais de 7% do
território daquele Estado, que, desde a sua criação, conta
com a presença de numerosos grupos indígenas, sendo a
população em questão ali residente a terceira maior do
país, só perdendo para aquelas localizadas nos Estados do
Amazonas e Mato Grosso. A existência de tal população,
aliás, terá sido um dos fatores determinantes da criação do
novo Estado.
Volto a afirmar: a ausência de citação do Estado
de Roraima e dos Municípios de Uiramutã, Pacaraima e Normandia –
alcançados pela demarcação - para integrar a relação processual
surge como vício insanável, a impor o retorno do processo ao
estágio próprio.
DAS RAZÕES APRESENTADAS PARA A DEMARCAÇÃO EM
FAIXA CONTÍNUA
A União, em memorial apresentado, justifica a
demarcação em faixa contínua a partir dos seguintes aspectos:
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[...]
V. DA ÁREA RESERVADA À TERRA INDÍGENA RAPOSA SERRA
DO SOL. NECESSIDADE DA FAIXA CONTÍNUA. ASPECTOS CULTURAIS,
PRODUTIVOS E RELIGIOSOS.
A Terra Indígena Raposa Serra do Sol, conforme
disposição contida no decreto homologatório, ocupa uma
faixa contínua de 1.747.464 hectares, ou seja, 14.474,64
km2 (área representada por todo o Estado de Roraima),
equivalendo menos de 8% do território estadual.
Na região, existem 194 aldeias, nas quais vivem
aproximadamente 19.000 indígenas de cinco etnias, quais
sejam: Macuxi, Wapixana, Patamona, Ingaricó e Taurepang,
que se comunicam através de dialetos oriundos de uma mesma
língua denominada Pemon/Kapon.
Todas essas aldeias são formadas por índios que
compõem o mesmo grupo familiar, havendo relações
matrimoniais entre membros de tribos diferentes, posto que
os vínculos de parentesco acabam por impedir os casamentos
entre membros da mesma tribo.
Assim, embora distintos, os grupos indígenas
ocupam áreas próximas, contidas dentro de um território
único, qual seja, a Terra Indígena Raposa/Serra do Sol, que
permite aos indígenas a mobilidade e a interação
necessários à sua reprodução física, segundo seus usos,
costumes e tradição.
Como já relatado acima, a atividade indígena deve
ser preservada num sentido amplo.
A Constituição Federal reconhece não apenas a
ocupação física das áreas habitadas pelas tribos, mas, sim,
a ocupação tradicional do território indígena, o que
significa reconhecê-lo como toda a extensão de terra
necessária à manutenção e preservação das particularidades
culturais de cada grupo.
São incorporadas não só as áreas de habitação
permanente e de coleta, mas também todos os espaços
necessários à manutenção das tradições do grupo. Entram
nesse conceito, por exemplo, as terras consideradas
sagradas, os cemitérios distantes e as áreas de
deambulação.
Assim ao se garantir que a Reserva Serra do Sol
fosse demarcada em uma faixa contínua de terras, procurouse
atender a todos os requisitos legais atinentes à
matéria, preservando-se a identidade histórica e cultural
dos silvícolas que lá habitam.
Com efeito, a alteração do território original de
Raposa Serra do Sol, por meio da demarcação de "ilhas",
dificultaria o ritual acima descrito, em nítida ofensa ao
texto constitucional, que protege as terras necessárias à
reprodução física e cultural dos indígenas.
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102
[...]
Outro aspecto de relevo é que a produção agrícola
na reserva é realizada segundo o modelo de revezamento das
áreas de plantação. De tempos em tempos, os índios
abandonam as áreas de plantio, reiniciando a lavoura em
novas terras. Após um certo período, retornam aos terrenos
abandonados, e lá reiniciam a atividade agrícola.
De fato, a fragmentação de Raposa Serra do Sol
impediria a prática da agricultura nesse modelo, em
contrariedade à Constituição Federal, que protege as terras
indígenas utilizadas para as atividades produtivas. Com
feito, restringindo-se a área ocupada pelos índios, não
seria mais possível realizar o revezamento dos terrenos de
plantio, em prejuízo da agricultura indígena.
Cumpre ainda asseverar que na Reserva Raposa Serra
do Sol localiza-se o Monte Roraima (Parque Nacional do
Monte Roraima), que possui grande significado místico para
todas as etnias que vivem nas aldeias da reserva.
A demarcação em ilhas privaria muitas das
comunidades da reserva do acesso ao monumento, impedindo,
consequentemente, o direito constitucionalmente garantido
ao livre exercício de suas crenças.
Sobre o tema, vale observar algumas passagens do
laudo antropológico (folha 448, volume 2):
4. SITUAÇÃO ATUAL
É extremamente complexo realizar uma análise
sociológica sobre a situação vigente na área. Por um lado,
a diversidade cultural impossibilita ao pesquisador ter um
conhecimento abragente sobre os fenômenos culturais que
permeiam cada uma das etnias. Por outro lado, a penetração
da sociedade envolvente ocorrida através de várias frentes
de expansão e em momentos históricos distintos dificulta
uma análise sistemática entre os índios e os regionais.
Ao nos defrontarmos com um universo tão distinto,
em um curso espaço de tempo, observamos ser viável realizar
apenas uma análise das relações interétnicas existentes na
região. As relações vigentes entre os índios (diversas
etnias) com os segmentos da sociedade nacional, que são
representados por vários grupos, categorias profissionais e
classes sociais.
Abaixo, a conclusão (folha 468, volume 2):
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103
[...]
A demarcação da Área Indígena Raposa/Serra do Sol
não afetará negativamente a economia do Estado de Roraima.
A atividade pecuária extensiva, da forma que é praticada
dentro da área indígena, não necessita de muito
investimento de capital para ser realizada. O que faz com
que a atividade não tenha muita produtividade ou
rentabilidade, faltando assim contribuir de maneira
substancial para a economia do novo estado. Ademais o
Estado possui outras áreas de lavrado onde a pecuária ainda
pode se desenvolver.
A demarcação não trará socialmente efeitos
dramáticos: e uma combinação da atividade pecuária com
outras atividades que faz possível a sobrevivência
econômica da maioria dos ocupantes da área indígena; mais
da metade deles não moram dentro da área indígena e as
ocupações não empregam muita mão-de-obra de não-índios. A
demarcação da terra afetará crucialmente 61 ocupantes que
nela tem suas atividades principais, mas que certamente
terão mais condições de se refazer economicamente do que
1778 pais de família índios.
As fazendas, sítios e garimpos localizados na área
trazem inúmeros prejuízos às comunidades indígenas, que
estão impedidas de crescer em todo o seu potencial social,
econômico e cosmológico. Os inúmeros conflitos envolvendo
fazendeiros, garimpeiros e índios, com conseqüências graves
e não raras fatais para as comunidades indígenas e seus
membros, causados pela disputa pela terra e seus recursos
naturais, só terão uma definição com a demarcação da terra
indígena.
Não existe ainda nenhuma infra-estrutura dentro da
área indígena que demande uma quantia substancial de
indenização. Pelo contrário, com poucas exceções, as
benfeitorias existentes das fazendas e sítios são
precárias. As benfeitorias existentes na vila e pontos de
apoio ao garimpo poderão ser utilizadas pelas próprias
comunidades indígenas futuramente.
A demarcação da terra tradicionalmente ocupada é
uma obrigação legal do Estado Brasileiro a ser cumprida até
junho de 1993 e um direito imprescindível dos Macuxi,
Ingarikó e Wapixana que resitiram a mais de cem anos de
colonização.
Pois bem, somente em passe de mágica se pode
conciliar o ditame constitucional no sentido da preservação da
posse indígena existente em 1988 – terras ocupadas – com a
desproporcional demarcação contínua. Os fenômenos se contrapõem.
A lei do menor esforço, no que se deixou de levantar os espaços
territoriais realmente ocupados pelos indígenas e protegidos, a
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104
partir de então, com a pecha de nulidade de atos de
transferência subsequentes, mostra-se nefasta e não atende aos
interesses maiores de nacionalidade, harmonizando-se, isto sim,
com as diversas sinalizações internacionais de cunho
separatista. Não se pode mesmo crer que, em 1988, número
limitado de indígenas ocupasse, de forma contínua, área tão
vasta.
A seriedade da questão é tanta que os deputados
Aldo Rebelo e Ibsen Pinheiro acabam de apresentar, no corrente
mês, o Projeto de Lei nº 4.791, objetivando melhor definir a
demarcação de terras indígenas. Assim o fizeram afastando a
premissa de ser a apatia o mal da nossa quadra. Visa o projeto,
inclusive, além de nova sistemática de demarcação, à intervenção
do próprio Legislativo. Essa notícia consta de artigo do já
citado professor de Filosofia da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, Denis Lerrer Rosenfield, sob o título "Demarcação
de terras indígenas", veiculado no Jornal O Estado de S. Paulo
do último dia 16 de março. Ressalta o articulista que:
O País já possui mais de 108 milhões de hectares
de terras indígenas, o que corresponde a 13,5% do
território nacional, para uma população que não ultrapassa
400 mil pessoas em terras propriamente rurais. No caso dos
indígenas que vivem nas cidades, o problema é completamente
outro, pois já são aculturados. Seus problemas são sociais,
educacionais, de saúde, de moradia e de trabalho e, como
tais, devem ser enfrentados. A questão, aqui, não é de
ordem fundiária. Ora, tal extensão corresponde a uma boa
fatia do continente europeu, correspondendo a muitos
países. Logo, qualquer nova demarcação deveria ser
extremamente criteriosa. Por exemplo, há em curso, em Mato
Grosso do Sul, como bem observam os dois parlamentares, uma
disputa por demarcação de uma área de mais de 10 milhões de
hectares de terra fértil. "A região concentra parte
substancial da produção rural de Mato Grosso do Sul, onde
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105
trabalham 30 mil agricultores, e responde por 60% da
produção de grãos daquele Estado". Pode uma unidade
federativa ser amputada de uma parte tão substancial de seu
território?
E, então, conclui:
O Brasil é uma unidade federativa, não uma
comunidade de nações. O processo histórico que conduziu a
esse arcabouço constitucional, construído com muita dor e
luta, não pode ser levianamente questionado por movimentos
socias, por ONGs nacionais e estrangeiras e organizações
políticas que procuram redesenhar o País. Surge aí a ideia
e, pior, a pretensão de formação de nações indígenas, com
direito à autodeterminação e ao autogoverno. Os mais
engajados, como o Cimi, vinculado à Conferência Nacional
dos Bispos do Brasil (CNBB), e ONGs internacionais, já
falam de reconhecimento internacional dessas nações em
organismos internacionais. Advogam para que o País
reconheça a Declaração dos Povos Indígenas, que sinaliza
para esse caminho. A soberania nacional ficaria
inviabilizada, com o País não podendo mais explorar
livremente os seus recursos minerais e hídricos. Inclusive
a atuação das Forças Armadas e da Polícia Federal estaria
comprometida.
O clima de insegurança está instalado, podendo ter
como desfecho situações de violência. "Proprietários cujos
títulos foram regularmente emitidos pelo governo brasileiro
se veem subitamente na condição de invasores de suas
próprias terras, em clara violação aos princípios da
segurança jurídica e da boa-fé, que regem a relação entre o
Estado e seus administrados". Não se resolve um problema
fundiário criando outro, em que os protagonistas,
proprietários rurais e indígenas, aparecem ambos como
vítimas. Eis por que a cautela democrática proposta pelos
deputados Aldo Rebelo e Ibsen Pinheiro deve ser levada em
máxima consideração.
Caberia, então, indagar qual a motivação desse
projeto. Haveria a influência do que sinalizado, embora não
encerrado este julgamento, pelo Supremo? Que a reflexão seja
profícua.
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De tudo, surge o descompasso. Abandonou-se a
premissa constitucional voltada à apuração da posse indígena em
outubro de 1988 para ter-se, quem sabe considerado o menor
esforço, a demarcação contínua como se, em toda a extensão
territorial alcançada, houvesse a referida posse. O segundo
descompasso está ligado à inviabilidade de harmonizar-se o
isolamento ventilado, afastando-se a presença de brasileiros da
área com a demarcação contínua. Uma coisa é dar-se a verificação
da posse pelos indígenas em 1988 e preservá-la, impedindo-se a
permanência de terceiros. Outra diversa, que não se coaduna com
os ditames constitucionais, que a todos submetem, é fazer-se a
demarcação contínua e, aí, em área de tamanho incompatível com o
conceito de posse, chegar-se à exclusão dos que não sejam
considerados, na via direta ou indireta, indígenas.
Neste caso, caminhar-se-á, na verdade, para o
indesejável separatismo, para a limitação à liberdade de ir e
vir prevista na Carta da República quanto a tantos outros
brasileiros a formarem a maioria. Nesse contexto, vê-se o
abandono do princípio de coerência da Constituição ressaltado
pelo Professor Doutor Manoel Gonçalves Ferreira Filho em parecer
apresentado a partir de consulta formalizada pelo Dr. Luiz
Aparício Fuzaro, quando, então, citou o mestre vienense Hans
Kelsen:
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107
Esta unidade também se exprime na circunstância de
uma ordem jurídica poder ser descrita em proposições
jurídicas que se não contradizem28.
Há de fazer-se justiça. A Constituição brasileira
mostra-se um todo composto de normas interligadas, que não
apresentam, considerado, ao menos, o texto primitivo,
contradições. O que se passa a ter é visão distorcida, à mercê
de interpretação discrepante do que nela se contém,
potencializando-se certos dispositivos, e se lhes dando alcance
insuplantável, em detrimento de outros, como se houvesse, no
Documento Maior, preceitos de hierarquias diversas. Repito, à
exaustão, para ouvidos que não se fazem sensíveis à realidade: a
Carta Federal consagra, acima de tudo, a ordem natural das
coisas, é ato de inteligência decorrente da vontade do povo
brasileiro, não possuindo normas em prejuízo de outras, não
possuindo normas de patamares diferentes. Deve-se perceber essa
verdade maior, sob pena de grassar a insegurança jurídica no que
vieram a predominar critérios circunstanciais, critérios
momentâneos, destoantes de valores perenes. Nesse mesmo sentido,
considerado o instituto da propriedade, tem-se a visão do
Professor e ex-Ministro integrante deste Tribunal José Carlos
Moreira Alves, externada também em parecer que chegou às mãos do
Colegiado.
28 Teoria Pura do Direito. Tradução Portuguesa – Amado Ed., Coimbra,
Tomo 2, 1962, p. 28.
Pet 3.388 / RR
108
Sob o prisma da demarcação setorizada, não é
demais mencionar o entendimento do Ministério do Interior logo
após a promulgação da Carta de 1988. Em pronunciamento à
delegação parlamentar norte-americana em visita ao Brasil, em
Brasília, no dia 13 de janeiro de 1989, o então ministro João
Alves Filho esclareceu29:
O objetivo dessa política está orientado para a
preservação e melhoria das condições de vida e valorização
da cultura das sociedades indígenas, impedindo a
desarticulação de suas economias e autonomias tribais,
assegurando-se os mecanismos de preservação, delimitação e
demarcação de terras.
Em momento algum, versou-se o que viria à balha
mais tarde, ou seja, o abandono do levantamento da real posse
indígena em 1988, para ter-se não só a demarcação contínua que a
despreza como também visão isolacionista, afastada a permanência
de não-índios na área demarcada.
DAS TERRAS INDÍGENAS – GARANTIA CONSTITUCIONAL –
CONFRONTO COM OS DIREITOS ADQUIRIDOS ANTERIORMENTE À
CONSTITUIÇÃO DE 1988
Sustenta a União inexistir direito adquirido por
particulares em relação a terras de posse indígena, sendo nulos,
não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto
a ocupação, o domínio e a posse das terras ou a exploração das
29 "João Alves Filho – pronunciamentos, artigos e entrevistas
(1987-1990)". Brasília, 1990.
Pet 3.388 / RR
109
riquezas naturais delas constantes. As terras pertencem à União,
tendo os silvícolas posse permanente. Assevera que o processo de
demarcação é meramente declaratório e não constitutivo.
Eis trecho da ementa do Recurso Extraordinário nº
183.188-0/MS, relatado pelo ministro Celso de Mello, publicado
no Diário da Justiça de 14 de fevereiro de 1997:
[...]
- A importância jurídica da demarcação
administrativa homologada pelo Presidente da República -
ato estatal que se reveste de presunção juris tantum de
legitimidade e de veracidade - reside na circunstância de
que as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios,
embora pertencentes ao patrimônio da União (CF, art. 20,
XI), acham-se afetadas, por efeito de destinação
constitucional, a fins específicos voltados, unicamente, à
proteção jurídica, social, antropológica, econômica e
cultural dos índios, dos grupos indígenas e das comunidades
tribais.
A QUESTÃO DAS TERRAS INDÍGENAS - SUA FINALIDADE
INSTITUCIONAL.
- As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios
incluem-se no domínio constitucional da União Federal. As
áreas por elas abrangidas são inalienáveis, indisponíveis e
insuscetíveis de prescrição aquisitiva.
A Carta Política, com a outorga dominial atribuída
à União, criou, para esta, uma propriedade vinculada ou
reservada, que se destina a garantir aos índios o exercício
dos direitos que lhes foram reconhecidos
constitucionalmente (CF, art. 231, §§ 2º, 3º e 7º),
visando, desse modo, a proporcionar às comunidades
indígenas bem-estar e condições necessárias à sua
reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e
tradições.
[...]
Vale transcrever a ementa do acórdão relativo ao
Recurso Extraordinário nº 219.983-3/SP, do qual fui relator,
julgado pelo Plenário em 9 de dezembro de 1998:
Pet 3.388 / RR
110
BENS DA UNIÃO - TERRAS - ALDEAMENTOS INDÍGENAS -
ARTIGO 20, INCISOS I E XI, DA CARTA DA REPÚBLICA - ALCANCE.
As regras definidoras do domínio dos incisos I e XI do
artigo 20 da Constituição Federal de 1988 não albergam
terras que, em passado remoto, foram ocupadas por
indígenas.
No voto proferido, fiz um retrospecto do
tratamento conferido às terras ocupadas por indígenas no País,
sob a égide das Constituições anteriores:
[...] A esta altura cabe indagar: nas previsões
das Cartas pretéritas e na da atual, no que alude a "...
terras que tradicionalmente ocupam...", é dado concluir
estarem albergadas situações de há muito ultrapassadas, ou
seja, as terras que foram, em tempos idos, ocupadas por
indígenas? A resposta é, desenganadamente, negativa,
considerado não só o princípio da razoabilidade,
pressupondo-se o que normalmente ocorre, como também a
própria letra dos preceitos constitucionais envolvidos. Os
das Cartas anteriores, que versaram sobre a situação das
terras dos silvícolas, diziam da ocupação, ou seja, de um
estudo atual em que revelada a própria posse das terras
pelos indígenas. O legislador de 1988 foi pedagógico. Após
mencionar, na cabeça do artigo 231, a ocupação, utlizandose
da expressão "... as terras que tradicionalmente ocupam,
competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar
todos os seus bens", veio, no § 1º desse mesmo artigo, a
definir o que se entende como terras tradicionalmente
ocupadas. Atente-se para a definição, no que, ante a
necessidade de preservar-se a segurança jurídica, mais uma
vez homenageou a realidade.
§ 1º. São terras tradicionalmente ocupadas
pelos índios as por ela habitadas em caráter
permanente, as utilizadas para as suas atividades
produtivas, as imprescindíveis à preservação dos
recursos ambientais necessários a seu bem-estar e
as necessárias à sua reprodução física e cultural,
segundo seus usos, costumes e tradições.
Mais do que isso, no parágrafo seguinte cuida a
Carta da República de deixar explícita a necessidade de
ter-se, como atual, a posse:
§ 2º. As terras tradicionalmente ocupadas
pelos índios destinam-se à sua posse permanente,
cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do
solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.
Pet 3.388 / RR
111
Esse precedente serviu de fundamento para a
edição do Verbete nº 650 da Súmula do Supremo, com a seguinte
redação:
Os incisos I e XI do artigo 20 da Constituição
Federal não alcançam terras de aldeamentos extintos, ainda
que ocupadas por indígenas em passado remoto.
No voto condutor deste julgamento, do ministro
Carlos Ayres Britto, está consignado ser o marco temporal da
ocupação a data em que a Carta de 1988 veio à balha:
I – o marco temporal da ocupação. Aqui é preciso
ver que a nossa Lei Maior trabalhou com data certa: a data
da promulgação dela própria (5 de outubro de 1988) como
insubstituível referencial para o reconhecimento, aos
índios, "dos direitos sobre as terras que tradicionalmente
ocupam". Terras que tradicionalmente ocupam, atente-se, e
não aquelas que venham a ocupar. Tampouco as terras já
ocupadas em outras épocas, mas sem continuidade suficiente
para alcançar o marco objetivo do dia 5 de outubro de 1988.
Marco objetivo que reflete o decidido propósito
constitucional de colocar uma pá de cal nas intermináveis
discussões sobre qualquer outra referência temporal de
ocupação da área indígena. Mesmo que essa referência
estivesse grafada em Constituição anterior. É exprimir: a
data de verificação do fato em si da ocupação fundiária é o
dia 5 de outubro de 1988, e nenhum outro.
Contudo, examinando o confronto do direito dos
indígenas com o daqueles que ocupavam as terras - e a ocupação
não admite sobreposição -, ainda que anteriormente à promulgação
da Carta, o ministro Carlos Ayres Britto, relator, assentou:
[...] E tudo a expressar, na perspectiva da
formação histórica do povo brasileiro, a mais originária
mundividência ou cosmovisão. Noutros termos, tudo a
configurar um padrão de cultura nacional precedente à do
colonizador branco e mais ainda do negro importado do
Pet 3.388 / RR
112
continente africano. A mais antiga expressão da cultura
brasileira, destarte, sendo essa uma das principais razões
de a nossa Lei Maior falar do reconhecimento dos "direitos
originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam". O
termo "originários" a traduzir uma situação jurídicosubjetiva
mais antiga do que qualquer outra, de maneira a
preponderar sobre eventuais escrituras públicas ou títulos
de legitimação de posse em favor de não-índios. [...] Pelo
que o direito por continuidade histórica prevalece,
conforme dito, até mesmo sobre o direito adquirido por
título cartorário ou concessão estatal.
É necessária a análise do objetivo da norma
inserta no § 6º do artigo 231 do Diploma Maior:
§ 6º - São nulos e extintos, não produzindo
efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a
ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere
este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo,
dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante
interesse público da União, segundo o que dispuser lei
complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a
indenização ou ações contra a União, salvo, na forma da
lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa
fé.
Nesse ponto, valho-me do voto que proferi no
julgamento do Mandado de Segurança nº 21.575-5/MS, apreciado
pelo Plenário em 3 de fevereiro de 1994, quando, relator, fiquei
vencido, tendo o Colegiado indeferido a ordem, ressalvando aos
impetrantes o direito de buscar as vias ordinárias:
Qual é o alcance do disposto no artigo 231 da
Constituição Federal de 1988? Implica a garantia de
permanência dos indígenas nas terras? Assegura o retorno
dos indígenas a terras em alguma época, ainda que perdida
no tempo, ocupadas, fulminando-se uma cadeia de títulos
devidamente registrados?
[...]
À época da alienação das terras pelo Estado,
passando, portanto, ao particular, vigorava a Carta de 1934
que, no artigo 129, assim dispunha:
"Art. 129. Será respeitada a posse de
terras de silvícolas que nelas se achem
Pet 3.388 / RR
113
permanentemente localizando, sendo-lhes, no
entanto, vedado aliená-las.
O preceito foi repetido, sob o nº 154, na Carta de
1937.
A Constituição de 1946 também mostrou-se tímida
quanto à proteção das terras indígenas, adotando o critério
das duas que a precederam, com ligeira modificação formal
do texto:
"Art. 216. Será respeitada aos silvícolas
a posse das terras onde se achem permanentemente
localizados, com a condição de não a transferirem"
Constata-se a existência de dois preceitos
distintos: o primeiro de natureza programática, no que
direcionado ao respeito à posse dos silvícolas. O segundo,
de cunho proibitivo quanto à transferência.
Somente com a Lei Básica de 1967 cuidou-se da
matéria em maior extensão. Estabeleceu-se a
inalienabilidade das terras habitadas pelos silvícolas,
remetendo-se, então, à legislação federal e aludiu-se à
posse permanente, reconhecido o direito ao usufruto
exclusivo das riquezas naturais e de todas as utilidades
nela existentes – caput do artigo 198. A previsão sobre o
usufruto resultou do fato de, mediante o artigo 4º, inciso
IV, de tal Carta, haverem sido incluídas entre os bens da
União "as terras ocupadas pelos silvícolas", definição que
não ocorrer com as Constituições de 1934 (artigo 20), de
1937 (artigo 36) e na de 1946 (artigo 34), valendo notar
que esta última sequer usou da forma alargada das duas
primeiras, que contemplaram a referência genérica aos "bens
que pertencerem à União, nos termos das leis atualmente em
vigor", isto quanto ao domínio federal.
Pois bem, com o Diploma Maior de 1967 foram
cominadas a nulidade e também a extinção dos efeitos
jurídicos de qualquer natureza de atos que tivessem por
objeto o domínio, a posse e a ocupação de terras habitadas
pelos silvícolas - § 1º. Previu-se mais, ou seja, que tais
fenômenos – nulidade e extinção de efeitos – não dariam aos
ocupantes direito a qualquer ação ou indenização contra a
União e a Fundação Nacional do Índio - § 2º.
Quando da entrada em vigor de tais preceitos – em
1967 – e pelos trabalhos antropológicos realizados, os
indígenas – hoje cerca de 150 – já estavam há pelo menos
vinte e sete anos longe de suas terras e, portanto, quer
para a definição do domínio da União, quer para a proteção
aos próprios silvícolas já não se podia falar em terras por
eles ocupadas. O Estado alienara-as em dezembro de 1937, ou
seja, trinta anos antes da inovadora disciplina
constitucional.
A Emenda Constitucional de 1969 não implicou
alteração de tais normas, conforme depreende-se, até mesmo,
Pet 3.388 / RR
114
da repetição dos números dos artigos, parágrafos e incisos
a elas relacionadas.
E o que houve com a promulgação da Carta de 1988?
Uma revolução na matéria, fulminando-se situações de há
muito constituídas sob o pálio de ordens constitucionais
precedentes?
Por acaso desconheceram-se títulos de propriedade
compreendidos em cadeia iniciada há mais de cinqüenta anos,
ou seja, há mais de meio século, viabilizando-se o retorno
dos silvícolas a terra ocupadas em período anterior?
A resposta é desenganadamente negativa.
É certo que o artigo 67 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias impôs à União o dever de
concluir a demarcação das terras indígenas no prazo de
cinco anos a partir da promulgação da Constituição.
Todavia, ao cogitar-se dos bens da União, dentre eles
incluíram-se não as terras que outrora foram ocupadas pelos
silvícolas e que, por isto ou por aquilo, deixaram de sê-lo
e, mais do que isso, passaram ao domínio privado, atuando
como alienante o próprio Estado. Aludiu-se às terras
tradicionalmente ocupadas pelos índios – inciso XI do
artigo 20, o que, no campo da razoabilidade, da segurança
da vida de um Estado Democrático de Direito, faz pressupor
situação de fato definida – a ocupação – muito embora
presentes conflitos quanto aos limites em que verificada.
No particular, é temerário falar em terras imemoráveis com
o alcance que vem sendo atribuído à expressão, ou seja, de
autorizar o desfazimento de uma gama de atos, desalojandose
tantos quantos confiaram na ordem jurídica em vigor e,
portanto, na formalização das relações jurídicas de que
participaram. Não, a tanto não leva a interpretação da
atual Carta, nem da que lhe antecedeu. Em momento algum
visou-se a corrigir as imensas injustiças praticadas contra
aqueles que já habitavam o Brasil à época da descoberta,
porquanto isto acabaria por ocorrer com o sacrifício de
quem não vivenciou as práticas de outrora e de valores tão
caros quando em jogo a segurança na vida em uma sociedade.
A atual Carta não assegura aos indígenas o retorno
às terras que outrora ocuparam, seja qual for a situação
jurídica atual e o tempo transcorrido desde que as
deixaram. O reconhecimento de direitos contido no artigo
231 está ligado, no particular, às "terras que
tradicionalmente ocupam" (presente), sendo que houve nítida
preocupação em definir o sentido da expressão. De acordo
com o § 1º, são terras tradicionalmente ocupadas pelos
índios "as por eles habitadas em caráter permanente, as
utilizadas para suas atividades produtivas, as
imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais
necessários a seu bem-estar e as necessárias à sua
reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e
tradições". Constata-se que toda a definição parte do
pressuposto de as terras vierem sendo habitadas pelos
silvícolas, valendo notar que, coerentemente, o § 1º do
citado artigo veda a remoção dos grupos indígenas de suas
terras. Por outro lado, a regra sobre a nulidade, extinção
Pet 3.388 / RR
115
e ausência de produção de efeitos jurídicos, verdadeira
superposição de conseqüências, isto quanto aos atos que
tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das
terras a que se refere o artigo ou a exploração das
riquezas naturais do solo, rios e lagos nelas existentes,
ressalvando relevante interesse público da União - § 6º -
não tem alcance suficiente a fulminar alienação que foi
formalizada por unidade da Federação há mais de meio
século, sob pena de abrir-se campo propício a um sem número
de reivindicações em tal sentido, pois o artigo 232 da
Carta cogita da legitimação das comunidades e organizações
indígenas para ingressar em Juízo em defesa dos direitos e
interesses adquiridos. Fico a imaginar o descalabro do
enfoque abrangente que respaldou o Decreto de homologação.
Para os fins do artigo 231 da Constituição Federal,
admitiu-se não a habitação das terras indígenas em período
ao menos posterior à Carta de 1967, mas até 1938. Imaginese
o que poderá vir a acontecer com áreas em que hoje
existem grandes cidades e que outrora foram ocupadas por
índios.
Não, a isto não conduzem os preceitos
constitucionais aplicáveis à espécie. Prevêem não a
devolução das terras das quais de há muito foram retirados
os indígenas e que hoje estão na titularidade de pessoas
diversas, mas asseguram a permanência dos índios nas que
por eles estão habitadas, podendo-se cogitar de retroação à
vigência da Carta de 1967, a que pela primeira vez dispôs
sobre o tema com as conseqüências drásticas acima
consignadas. A retroação aos idos de 1938, com a declaração
de ineficácia dos títulos formalizados e despejo sumário
daqueles que nelas estão alojados, é passo demasiadamente
largo, que não atende aos ditames constitucionais,
especialmente quando estes também albergam o direito de
propriedade.
Razões humanísticas, o clima da ECO 92 – época em
que foi assinado o Decreto homologatório – não se sobrepõem
à Lei Máxima. Configuram ato violador do direito líquido e
certo dos Impetrantes à propriedade da qual são titulares a
demarcação tal como homologada – ou seja, a partir da
constatação de que até 1938 os índios estiveram nas terras,
e para os fins do artigo 231 da Carta Federal – e a
nulidade, extinção e retirada dos efeitos jurídicos dos
atos sucessivos de alienação a partir de 1937 – folha 79.
Acresce a isto que mesmo diante das conseqüências
jurídicas do Decreto homologatório da demarcação – se é que
ele realmente as tem – posto que formalmente baixado para
os fins fixados no artigo 231 da Constituição Federal, os
Impetrantes não foram cientificados para, querendo,
acompanhar o processo administrativo que lhe serviu de base
e no qual se entendeu pelo enquadramento das terras como de
ocupação indígena. Somente com a conclusão respectiva se
lhes dirigiram cartas comunicando a reocupação da área
pelos índios e conferindo o exíguo prazo de cinco dias para
desocupação, sob pena de a FUNAI não se responsabilizar por
atos predatórios dos indígenas, seguindo-se o requerimento
junto ao Ofício de Imóveis com o objetivo de alterar os
registros constantes das matrículas.
Pet 3.388 / RR
116
O simples fato de tratar-se de um processo
administrativo de demarcação de terras não exclui a
observância das regras constitucionais asseguradoras do
direito de defesa – incisos LIV e LV do artigo 5º. O que se
nota é que os Impetrantes tiveram os imóveis alcançados
pelo Decreto de homologação, sem que tenham participado do
processo administrativo que lhe deu causa.
Por tudo isso, concedo a ordem pleiteada para
cassar o Decreto do Excelentíssimo Senhor Presidente da
República, datado de 21 de maio de 1992, e que foi
publicado no dia imediato, relativo às terras situadas no
Município de Aral Moreira – Estado de Mato Grosso do Sul –
e que nele estão discriminadas.
É o meu voto.
Sob o ângulo de haver o domínio da União, cabe
transcrever a ementa do acórdão relativo ao Recurso
Extraordinário nº 101.037-1/SP, da relatoria do ministro
Francisco Rezek, publicada no Diário da Justiça de 19 de abril
de 1985:
ILHAS OCEÂNICAS. C.F., ART-4.-II. HÁ DE SER
ENTENDIDA ESTA EXPRESSÃO EM SEU SENTIDO TÉCNICO E ESTRITO,
VISTO QUE O CONSTITUINTE DE 1967 POR CERTO NÃO PRETENDEU
INSCREVER, ABRUPTAMENTE, NO DOMÍNIO DA UNIÃO, BENS SITUADOS
EM CENTROS URBANOS, NAS ILHAS LITORÂNEAS, E INTEGRANTES DO
PATRIMÔNIO DE ESTADOS, MUNICÍPIOS E PARTICULARES. MÉRITO DA
SENTENÇA SINGULAR E DO ACÓRDÃO DO T.F.R. HIPÓTESE DE NÃOCONHECIMENTO
DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO DA UNIÃO.
Analisando a superveniência da Carta de 1967, no
âmbito do dispositivo que incluiu entre os bens da União as
ilhas oceânicas, destacou Sua Excelência:
Parece seguro que o constituinte de 1967, ao
empregar o termo "ilhas oceânicas" no art. 4º-II do texto
maior, fê-lo no exato sentido e limitado que
reconhecidamente ostenta há tanto tempo entre nós. A tese
da União não é desarrazoada à consideração simples do texto
constitucional, no preciso tópico em exame. Não seria
correto, entretanto, enunciar pela metade os efeitos dessa
Pet 3.388 / RR
117
tese, usando-a como obstáculo ao usucapião postulado por
uma família que se instalou há cinqüenta anos num terreno
de Ilhabela, e escamoteando, no mesmo passo, tudo quanto de
absurdo a referida tese importa consigo, sobretudo à vista
das circunstâncias em que se produziu a Carta de 1967, e do
fato de que a federação é ainda, embora tantos o ignorem, a
forma do Estado brasileiro. A ler na expressão "ilhas
oceânicas" o que lêem, neste momento, os patronos da
fazenda federal, e dada a realidade elementar de que contra
o comando constitucional não há direito adquirido ou ato
jurídico perfeito que se contraponha, teremos três Unidades
federadas – não menos que três Unidades federadas –
perderam, em 1967, suas capitais para o patrimônio da
União. Em São Luís do Maranhão, bem assim em Vitória e
Florianópolis, o Estado e o município já não deteriam seus
bens dominicais, nem os de uso especial, nem os de uso
comum do povo. Ter-se-ia extinto, igualmente, o patrimônio
privado. Do palácio do governo à casa de família, da
catedral ao clube recreativo, das lojas e fábricas à praça
pública, tudo se haveria num repente convertido em
patrimônio da União por obra do constituinte de 67, tomado
este – logo este – por um rompante de audácia que teria
assombrado os legisladores da Rússia de 1918. Igual
fenômeno ter-se-ia abatido sobre importante centros urbanos
do Estado de São Paulo, situados em ilhas costeiras, bem
como sobre outras incontáveis cidades e povoações que se
estendem pelo litoral atlântico. A modéstia, no entanto,
terá levado os patronos da fazenda federal a silenciar
sobre essas admiráveis conseqüências do seu conceito de
"ilhas oceânicas", preferindo enunciá-lo tão só em face do
particular que reclama do Judiciário o reconhecimento da
prescrição aquisitiva.
Surge o problema alusivo ao interesse jurídico
dos fazendeiros que possuem título de propriedade legitimado
pelo Incra em área posteriormente demarcada. A União sustenta a
nulidade dos títulos, pois a terra sempre lhe pertenceu, ante o
artigo 231 do Diploma Maior.
Vejam o que consignou a respeito o ministro
Peçanha Martins, do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento
do Mandado de Segurança nº 4.821/DF pela Primeira Seção daquela
Corte:
[...]
Pet 3.388 / RR
118
E perguntar-se-á, diante dessas normas, e das
provas pré-constituídas nesses autos: serão nulos os
títulos e respectivos registros, inclusive os originais
expedidos pelo Estado do Maranhão? Diz a FUNAI que sim,
porque as terras seriam de posse permanente indígena. Pode,
porém, a própria União, que é a proprietária da terra
indígena, declarar, por um dos seus órgãos, a posse
permanente indígena? Penso que não. O contrário seria
admitir pudesse a união ser parte e juiz do seu próprio
interesse. De outro lado, como admitir se faça tábula rasa
do devido processo legal, do contraditório e da ampla
defesa, princípios constitucionais consagrados por todas as
Constituições democráticas? Invoca-se o processo
estabelecido no Decreto n° 22, de 04.02.1991, que em nenhum
momento faz qualquer referência ao contraditório e a ampla
defesa do cidadão brasileiro ou mesmo estrangeiro que
estiver ocupando tais terras ou delas for proprietário
também por compra direta ao Estado, a quem a própria
Constituição defere a propriedade das "terras devolutas não
compreendidas entre as da união" (art. 26, IV). Vale dizer
que nos termos do art. 20, "são bens da união: II. As
terras devolutas indispensáveis a defesa das fronteiras,
das fortificações e construções militares, das vias
federais de comunicação e a preservação ambiental definidas
em lei; XI - as terras tradicionalmente ocupadas pelos
índios."
A Lei 6001/73 comete a órgão federal a defesa
judicial ou extrajudicial dos direitos dos silvícolas e das
comunidades indígenas (art. 35), e, no art. 36, prescreve:
"Art. 36. Sem prejuízo do disposto no artigo
anterior, compete à União adotar as medidas administrativas
ou propor por intermédio do Ministério Público Federal, as
medidas judiciais adequadas à proteção da posse dos
silvícolas sobre as terras que habitam."
E no parágrafo único complementa:
"Parágrafo único. Quando as medidas judiciais
previstas neste artigo forem propostas pelo órgão federal
de assistência, ou contra ele, a União será litisconsorte
ativa ou passiva".
Como se constata, o Estatuto do Índio, como não
podia deixar de ser, submete ao Poder Judiciário a solução
dos litígios que envolvam as terras indígenas, mormente a
posse delas. E não poderia deixar de ser assim num estado
de direito democrático. A União, volto a dizer, não poderá
ser parte e juiz da causa. Estou hoje convencido que tem
razão o eminente Min. José de Jesus quando aponta a
necessidade de ação discriminatória para identificar a
propriedade das chamadas terras indígenas que estejam
ocupadas por terceiros. No caso dos autos, por exemplo, há
que se indagar qual dos órgãos da União terá procedido com
acerto: O Banco do Brasil, que examinou os títulos de
propriedade, os mesmos que só conferem presunção juris
tantum, e concedeu vultoso financiamento aos proprietários?
ou o IBAMA que concedeu-lhes autorização para desmatamento
e implantação de serraria? ou, ainda o Grupo de Trabalho
Pet 3.388 / RR
119
Interministerial que emitiu o Parecer n° 197, de 30.08.88,
de que resultou a edição da Portaria n° 158/88 (doc. 100),
retificando a Portaria Interministerial n° 076/88 (doc.
158) e reduzindo a área indígena a uma superfície de 65.700
ha?
Qual dos órgãos da administração direta e indireta
está certo? E, sobretudo, quando estaria correta a União:
na edição da Portaria 76 ou, ao revés, na de n° 158? Tais
dívidas e incertezas não poderiam justificar a edição da
Portaria s/n° impeditiva do trânsito e permanência dos que
ocupam e lavram a terra nem nos regimes autoritários ou
ditatoriais. No estado de direito democrático brasileiro, a
Portaria, ilegal no seu item III, porque editada por
autoridade não autorizada por lei, como bem assinalou o
Min. Milton Pereira, e inconstitucional toda ela, porque
desatende aos princípios constitucionais da liberdade de ir
e vir, desrespeita o princípio do contraditório e ampla
defesa e ignora o devido processo legal, violentando o
direito de propriedade.
Eis como concluiu o Colegiado:
PROCESSUAL CIVIL. MANDADO DE SEGURANÇA. DEMARCAÇÃO
DE TERRAS INDÍGENAS. POSSES OUTORGADAS PELO INCRA. DESPACHO
DO MINISTRO DA JUSTIÇA Nº 38/96.
1. O ato Ministerial impugnado desobedeceu as
prescrições do Decreto 22/91 e desconsiderou os Decretos
Presidenciais 67.557/70 e 68.443/71, consoante os quais a
área objeto do presente mandado de segurança foi declarada
de interesse social, para fins de reforma agrária, delas
não podendo ser desapossadas as inúmeras famílias ali
assentadas pelo INCRA, desde 1982.
2. Segurança concedida para, confirmando a
liminar, anular o Despacho nº 38/96.
É hora de finalizar este voto de mérito, que
reconheço já ir longe. O tema impôs-me uma reflexão maior, em
que pese não ter frutificado o pedido antecipado de vista - o
qual resultaria no terceiro voto e não no nono - em face da
circunstância de os colegas que me antecedem na ordem de votação
não haverem consentido. Paciência, o Colegiado sempre reserva
algumas surpresas. Nem por isso - a documentação o comprova -
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deixei de debruçar-me sobre a momentosa controvérsia, procedendo
como se fosse relator do processo, procedendo como se tivesse
que veicular o primeiro voto no caso.
Julgo procedente o pedido inicial, fixando os
seguintes parâmetros para uma nova ação administrativa
demarcatória, porquanto nula a anterior:
a) audição de todas as comunidades indígenas
existentes na área a ser demarcada;
b) audição de posseiros e titulares de domínio
consideradas as terras envolvidas;
c) levantamento antropológico e topográfico para
definir a posse indígena, tendo-se como termo inicial a data da
promulgação da Constituição Federal, dele participando todos os
integrantes do grupo interdisciplinar, que deverão subscrever o
laudo a ser confeccionado;
d) em consequência da premissa constitucional de
se levar em conta a posse indígena, a demarcação deverá se fazer
sob tal ângulo, afastada a abrangência que resultou da primeira,
ante a indefinição das áreas, ou seja, a forma contínua adotada,
com participação do Estado de Roraima bem como dos Municípios de
Uiramutã, Pacaraima e Normandia no processo demarcatório.
e) audição do Conselho de Defesa Nacional quanto
às áreas de fronteira.
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É o voto.

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