Militares na Cabeça do Cachorro
A coluna de hoje é uma homenagem ao trabalho e à presença dos soldados
brasileiros na Amazônia
Perfilados, os soldados aguardaram em posição de sentido, sob o sol do
meio-dia. Eram homens de estatura mediana, pele bronzeada, olhos
amendoados, maçãs do rosto salientes e cabelo espetado. O observador
desavisado que lhes analisasse os traços julgaria estar na Ásia.
No microfone, a palavra de ordem do capitão: 'Soldado Souza, etnia tucano'.
Um rapaz da primeira fila deu um passo adiante, resoluto, com o fuzil no
ombro, e iniciou a oração do guerreiro da selva, no idioma natal. No
fim, o grito de guerra dos pelotões da fronteira: 'Selva!'.
O segundo a repetir o texto foi um soldado da etnia desana, seguido de
um baniua, um curipaco, um cubeu, um ianomâmi, um tariano e um hupda.
Todos repetiram o ritual do passo à frente e da oração nas línguas de
seus povos; em comum, apenas o grito final: 'Selva!'.
Depois, o pelotão inteiro cantou o hino nacional em português, a plenos
pulmões.
Ouvir aquela diversidade de indígenas, característica das 22 etnias que
habitam o extremo noroeste da Amazônia brasileira há 2.000 anos,
cantando nosso hino no meio da floresta, trouxe à flor da pele
sentimentos de brasilidade que eu julgava esquecidos.
Para chegar à Cabeça do Cachorro é preciso ir a Manaus, viajar 1.146
quilômetros Rio Negro acima, até avistar São Gabriel da Cachoeira, a
maior cidade indígena do país.
De lá, até as fronteiras com a Colômbia e a Venezuela, pelos rios
Uaupés, Tiquié, Içana, Cauaburi e uma infinidade de rios menores, só
Deus sabe. A duração da viagem depende das chuvas, das corredeiras e da
época do ano, porque na bacia do Rio Negro o nível das águas pode subir
mais de dez metros entre a vazante e o pico da cheia.
É um Brasil perdido no meio das florestas mais preservadas da Amazônia.
Não fosse a presença militar, seria uma região entregue à própria sorte.
Ou, pior, à sorte alheia.
O comando dos Pelotões de Fronteira está sediado em São Gabriel. De lá
partem as provisões e o apoio logístico para as unidades construídas à
beira dos principais rios fronteiriços: Pari-Cachoeira, Iauaretê,
Querari, Tunuí-Cachoeira, São Joaquim, Maturacá e Cucuí.
Anteriormente formado por militares de outros Estados, os pelotões hoje
recrutam soldados nas comunidades das redondezas. De acordo com o
general Francisco Albuquerque, ex-comandante do Exército, essa opção foi
feita por razões profissionais: 'O soldado do Sul pode ser mais
preparado intelectualmente, mas na selva ninguém se iguala ao indígena'.
Na entrada dos quartéis, uma placa dá idéia do esforço para construí-los
naquele ermo: 'Da primeira tábua ao último prego, todo material
empregado nessas instalações foi transportado nas asas da FAB'.
Os pelotões atraíram as populações indígenas de cada rio à beira do qual
foram instalados: por causa da escola para as crianças e porque em suas
imediações circula o bem mais raro da região -salário.
Para os militares e suas famílias, os indígenas conseguem vender algum
artesanato, trocar farinha e frutas por gêneros de primeira necessidade,
produtos de higiene e peças de vestuário. No quartel existe
possibilidade de acesso à assistência médica, ao dentista, à internet e
aos aviões da FAB, em caso de acidente ou doença grave.
Cada pelotão é chefiado por um tenente com menos de 30 anos, obrigado a
exercer o papel de comandante militar, prefeito, juiz de paz, delegado,
gestor de assistência médico-odontológica, administrador do programa de
inclusão digital e o que mais for necessário assumir nas comunidades das
imediações, esquecidas pelas autoridades federais, estaduais e municipais.
Tais serviços, de responsabilidade de ministérios e secretarias locais,
são prestados pelas Forças Armadas sem qualquer dotação orçamentária
suplementar.
Os quartéis são de um despojamento espartano. As dificuldades de
abastecimento, os atrasos dos vôos causados por adversidades climáticas
e avarias técnicas e o orçamento minguado das Forças Armadas tornam o
dia-a-dia dos que vivem em pleno isolamento um ato de resistência
permanente.
Esses militares anônimos, mal pagos, são os únicos responsáveis pela
defesa dos limites de uma região conturbada pela proximidade das Farc e
pelas rotas do narcotráfico. Não estivessem lá, quem estaria?
Como você deve ter percebido, leitor, a coluna de hoje é uma homenagem
ao trabalho e à presença dos soldados brasileiros na Amazônia.
'SELVA'!...
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