por: Lucas Figueiredo
A medida mais recente é a que também causou mais tensão na caserna: a decisão do governo de criar um grupo interministerial (Casa Civil, Defesa, Justiça e Secretaria Especial de Direitos Humanos) para propor um projeto de lei que instituirá a Comissão da Verdade. Com o mal-estar gerado nas Forças Armadas, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva teria aventado a possibilidade de rever a criação da comissão ou "desidratá-la". Oficialmente, contudo, nenhum recuo foi anunciado.
Especialista em questões militares e coordenador do Núcleo de Estudos de Instituições Coercitivas e da Criminalidade da Universidade Federal de Pernambuco, o professor Jorge Zaverucha afirma que Lula escolheu o "pior momento possível" para lançar a proposta da comissão. "O presidente abriu a discussão sobre tema tão complexo exatamente em seu último ano de governo", diz. "Foram precisos 25 anos para o surgimento de uma proposta concreta para a criação de Comissão da Verdade. Não conheço outro país que tenha demorado tanto a dar este passo fundamental para a contagem da história verdadeira do país. Todavia, ao contrário do Chile, do Peru e da África do Sul, não foi proposta uma Comissão da Verdade e Reconciliação. Apenas a de verdade. Por quê?", questiona Zaverucha.
De acordo com o professor, o governo não tem autonomia absoluta para decidir sobre o tema, que necessariamente passará pelo Congresso. "Pela Constituição Federal de 1988, a tortura é crime prescritível, mas o Brasil é signatário de convenções internacionais que consideram esse crime como sendo imprescritível. Ministros do atual governo almejam uma mudança constitucional no sentido de alterar o teor da vigente Lei de Anistia. Um direito deles. Cabe ao Congresso Nacional decidir se acata ou não tal proposta", afirma Zaverucha.
Para ele, caso não se consiga um debate equilibrado, o país sairá perdendo. "No Brasil, os militares acreditam que lutaram uma 'guerra justa' contra o surgimento de uma ditadura comunista. A oposição também acreditava na justeza de sua pugna. Há várias verdades em jogo que precisam ser discutidas democraticamente. Corre-se o risco de perdermos uma chance de ouro no avanço deste frutífero debate", diz o professor.
Amargura
Recentemente, ao entrevistar dezenas de agentes públicos (militares e civis) que serviram aos governos da ditadura — como o recém-falecido coronel Erasmo Dias —, o diretor de cinema Chain Litewski constatou o sentimento de perseguição que ronda os quartéis. "Algumas pessoas ligadas à repressão me falaram, em tom muito amargo, que não conseguem entender por que elas são execradas hoje em dia. Alegam que salvaram o país do comunismo, sacrificaram-se e agora são consideradas monstros e párias. Esse sentimento existe, obviamente, pelo fato de que as pessoas que elas combatiam agora estão no poder", afirma o diretor.
Litewski dirigiu o premiado documentário Cidadão Boilsen, que foca um personagem polêmico por ter sido, ao mesmo tempo, algoz da ditadura e vítima da guerrilha de esquerda: o executivo dinamarquês Henning Albert Boilsen, colaborador da repressão, assassinado em São Paulo, em 1971, por um comando conjunto do Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT) e da Ação Libertadora Nacional (ALN). Tendo conseguido agradar, com seu filme, tanto a militares quanto à esquerda, Litewski considera que, por mais que haja temor nos quartéis, não há um sentimento de revanchismo no ar. "Não percebo que exista um desejo de vingança ou revanche pela maioria da população brasileira. Vejo uma certa vontade, por parte de algumas pessoas, de entender o que exatamente aconteceu no período da ditadura militar no Brasil", diz.
Nas entrevistas que fez, Litewski notou que uma outra parcela de ex-agentes ligados à repressão continua tranquila. "São pessoas que não exibem remorso nem descontentamento com o fato que a maré política virou", diz. Para o diretor, o desejo de punição contra torturadores deve desaparecer à medida que as pessoas envolvidas com a repressão política morrerem.
Em xeque
Ações do Estado para revisitar atos do regime militar
1995
Por força de lei, sancionada por FHC, o Estado começa a assumir a responsabilidade sobre mortes perpetradas pela repressão. Familiares de vítimas recebem indenizações de até R$ 100 mil.
1996
O governo promove a primeira busca oficial de corpos de guerrilheiros do PCdoB no Araguaia.
2001
A Comissão de Anistia do Ministério da Justiça inicia o julgamento de casos de perseguição na ditadura. Indenizações milionárias são pagas.
2005
O governo Lula repassa ao Arquivo Nacional documentos do antigo SNI (Serviço Nacional de Informações).
2007
A Presidência da República, por intermédio da Secretaria Especial de Direitos Humanos, publica o livro Direito à Memória e à Verdade, que assume a participação do Estado na tortura, na morte e no desaparecimento de presos políticos.
2008
O Ministério da Justiça promove audiência pública intitulada Limites e possibilidades para a responsabilização jurídica dos agentes violadores dos direitos humanos durante o Estado de exceção.
O Ministério Público Federal em São Paulo move ação contra os coronéis reformados Carlos Alberto Brilhante Ustra e Audir Santos Maciel, ex-comandantes do Doi-Codi de São Paulo (um dos aparatos mais mortíferos da repressão) entre 1970 e 1976.
2009
O governo veicula campanha na TV, no rádio, em jornais e revistas e na internet do projeto Memórias Reveladas, que divulga a história de desaparecidos políticos e de suas famílias e pede a doação de documentos relativos ao regime militar para o Arquivo Nacional.
A Comissão de Anistia do Ministério da Justiça já acumula 30 caravanas pelo país, 700 sessões de julgamento e 35 mil pedidos de reparação aprovados (dois terços do total analisado).
2010
Um grupo de trabalho do governo estudará a criação da Comissão da Verdade, encarregada de apurar casos de violação dos direitos humanos na ditadura (tortura, estupro, assassinato e ocultação de cadáveres).
A Comissão de Anistia do Ministério da Justiça começa a analisar os 12 mil pedidos de reparação que ainda aguardam julgamento.
No fim de março, serão retomadas as buscas dos restos mortais de guerrilheiros do Araguaia.
Holofotes em Dilma
Revanchismo, recuperação da memória, acerto de contas com o passado. Seja lá o nome adotado para classificar as medidas do Estado em relação à revisão dos atos da ditadura militar, uma coisa é certa: o debate deverá contaminar a eleição presidencial, com a ministra-chefe da Casa Civil e pré-candidata do PT à Presidência, Dilma Rousseff, no centro das discussões.
O 3º Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), lançado no fim de dezembro, determina que a Casa Civil coordene o grupo ministerial encarregado de estudar a criação da Comissão da Verdade, que apuraria casos de violação dos direitos humanos na ditadura (como tortura, estupro, assassinato e ocultação de cadáveres). Além da pasta de Dilma, vão compor o grupo os ministérios da Defesa e da Justiça e a Secretaria Especial de Direitos Humanos. Ou seja, Dilma terá a última palavra sobre o projeto de lei que cria a Comissão da Verdade, a ser encaminhado ao Congresso ainda neste ano.
Dilma também será a fiadora de outras ações de governo que visam a rever os atos da ditadura. A Casa Civil, por intermédio do Arquivo Nacional, é a responsável pelo projeto Memórias Reveladas, que divulga a história de desaparecidos políticos e de suas famílias e pede a doação de documentos referentes à ditadura. Em maio, termina o prazo para recebimento de documentos, que deverão ser tornados públicos ainda em 2010. E, segundo apurou a reportagem, já foram doados papéis que contêm informações que jogam luz em casos de tortura e assassinatos de presos políticos.
Reação
Militares reformados que tiveram atuação de destaque no regime militar já desencadearam uma reação por meio da internet. Sites como A verdade sufocada (www.averdadesufocada.com), mantido pelo coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, ex-chefe do DOI-Codi de São Paulo, e Ternuma (www.ternuma.com.br), do grupo Terrorismo Nunca Mais, composto por civis e militares de extrema direita, manifestam críticas que os militares da ativa e o comando das Forças Armadas não podem fazer.
Em recente artigo publicado no Ternuma, o general Paulo Chagas atira contra o ministro-chefe da Secretaria Especial de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi. "O que ele quer de fato é a agitação, a desarmonia, a desmoralização das Forças, que frustraram o sonho ensandecido de assassinar a liberdade e transformar o Brasil numa grande Cuba", afirma no seu artigo o militar reformado.
Principal mentor da política de revisão dos atos da ditadura, Vannuchi é um dos que acompanharão as buscas dos restos mortais dos guerrilheiros do PCdoB desaparecidos na região do Araguaia (Pará), que serão retomadas no fim de março por um grupo coordenado pelo Ministério da Defesa. O ministro sempre nega que haja uma onda de "revanchismo" e insiste que as medidas têm como lema o direito à verdade e à memória. (LF)
MG > Levanta Brasil – União e clamor uníssono
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