Na madrugada da quarta-feira 28 de novembro, os soldados Granja e Guedes, da 5º Divisão de Levantamento, nas imediações do Morro da Providência, uma área próxima ao centro da cidade do Rio de Janeiro, atacaram a sentinela. O guarda foi agredido a coronhadas, mas resistiu e não entregou a arma que os agressores buscavam. Presos em flagrante, os soldados vão responder a inquérito e engrossar a estatística crescente de roubos e furtos de armas das organizações militares espalhadas pelo País.
No quartel, onde ocorreu o episódio, há muito mais mapas do que armas. Mas a sentinela empunhava um fuzil, o objeto de desejo dos traficantes cariocas. Não é por acaso que vários quartéis trocaram as armas das sentinelas: tiraram o fuzil e entregaram a escopeta calibre 12, que não interessa aos marginais (por ser facilmente encontrada no mercado negro). Ainda não se sabe a exata relação entre os soldados Granja e Guedes e as facções criminosas que operam o comércio de drogas na cidade. Não há, porém, dúvidas sobre o destino que seria dado à arma. A questão preocupa as Forças Armadas e parece ser mais grave do que se antevê em episódios como o ocorrido na 5º Divisão de Levantamento.
"As drogas ameaçam as Forças Armadas, em particular o Exército", afirma um documento oficial, o "Caderno de Instrução e Projeto de Liderança", preparado recentemente na Academia Militar das Agulhas Negras (Aman), onde são formados os aspirantes a oficiais encaminhados, em seguida, a todas as unidades militares brasileiras. A íntegra do trabalho será publicada na edição da revista Inteligência, que será distribuída, em lista restrita, a partir de 14 de dezembro.
"O traficante de drogas vive em meio extremamente violento e, para sobreviver, precisa de armas e munições ( ... ) Por isso, os quartéis e bases das Forças Armadas são vistos por eles como possíveis locais de suprimentos."
A preocupação não é desmedida. Já foi detectada a infiltração, ao menos no Exército, de "soldados do tráfico". O estudo da Aman, ao descrever o perfil dos militares que se envolvem com roubo de armas e munições dos quartéis, identifica três tipos que, ao fim, acabam nas malhas dos traficantes. São eles:
1. Indivíduos infiltrados Diz o trabalho elaborado pela seção de "Doutrina e Liderança" que "foi verificado pelos órgãos de inteligência que traficantes de drogas estavam incentivando a incorporação às Forças Armadas de jovens por eles cooptados, para que prestassem o serviço militar obrigatório".
Os traficantes sabem o que querem.
Segundo a Aman, há, inclusive, a orientação para que os infiltrados se tornassem "soldados exemplares" capazes de ganhar "a confiança dos oficiais e sargentos". De preferência deveriam, ao engajar-se, tomar-se "armeiros"
Como "armeiros", os infiltrados obteriam vantagens especiais: "Aprenderiam a combater, atirar e a fazer a manutenção do armamento e ficariam em condições de roubar armas e munições e obter informações sobre a segurança do aquartelamento, de maneira a facilitar o assalto de grupos armados à caserna, para capturar quantidades maiores de material bélico".
2. Militares endividados Eles são vítimas, segundo o documento, da propaganda do crediário fácil. A partir daí tornam-se devedores. Em muitos casos, não têm como saldar o compromisso assumido e, por isso, tentam roubar armas e munições para vender ao tráfico", aponta o trabalho.
Há situações em que o militar se liga diretamente ao tráfico. Passa de usuário a vendedor e acaba envolvido com o crime, "devendo dinheiro e favores aos traficantes", Os órgãos de inteligência das Forças Armadas constataram que, "na maioria" dos casos de roubo de armas e munições nas unidades militares, "os envolvidos haviam contraído dívidas que não podiam pagar". Assim, os traficantes tornam-se receptadores do material roubado.
3. Militares pressionados pelos traficantes Os alvos, neste caso, são os militares oriundos de famílias de renda mais baixa que moram na periferia ou nas favelas das grandes cidades, onde, em muitos casos, o poder dos traficantes é absoluto.
O documento da Aman descreve a situação: "Em várias oportunidades, soldados roubaram ou tentaram roubar armas e munições porque estavam sendo pressionados por traficantes que ameaçavam molestar seus familiares, caso os militares não lhes levassem pistolas, fuzis e cartuchos".
Em seguida, dá uma orientação aos futuros oficiais: "Torna-se cada vez mais importante conhecer bem os subordinados, levantando os problemas dos locais onde moram, a situação de suas famílias e outros dados que possam auxiliar na prevenção de roubos nos quartéis e no apoio aos militares ameaçados".
As Forças Armadas não descartam nem mesmo a hipótese de tentativa de assalto aos quartéis. Ousadia para isso não falta, embora as unidades militares tenham sempre um "plano de defesa" para ser desencadeado no caso de invasão por bandos armados. Em maio de 2004, o quartel do 8° Grupo de Artilharia de Campanha Pára-quedista, no Rio de Janeiro, sofreu assédio armado de traficantes.
Até agora têm prevalecido os processos de intimidação, infiltração e cooptação de militares. No mesmo ano de 2004, soldados desgarrados para o tráfico roubaram fuzis e cartuchos do Museu Histórico do Exército e do histórico Forte de Copacabana. O episódio foi amplamente divulgado porque, em reação inesperada, o próprio general Walderez de Castro, comandante militar do Leste, ocupou a entrada da favela da Rocinha, onde estavam os fuzis, e de lá só saiu quando as armas foram encontradas.
Nem sempre as questões têm sido resolvidas manu militari. Em 2006, em fato que também ganhou as manchetes, dez fuzis e uma pistola 9 milímetros foram levados do Estabelecimento Central do Exército (ECT), no Rio de Janeiro. Os ladrões cruzaram o quartel e renderam dez soldados e um cabo. O Exército desencadeou uma operação que mobilizou 600 militares de várias unidades, além de 150 PMs. Cinco favelas foram vasculhadas. Inutilmente. As armas só foram recuperadas após negociação clandestina com os traficantes. Um fato que, evidentemente, os comandantes militares negam de botas juntas.
Houve um tempo em que os generais se recusavam a admitir o problema. Uma maneira fantasiosa de lidar com ele. Partiam do pressuposto de que o fato deixaria de existir se fosse negado. Em vão. Nem mesmo um general tem poder para mandar prender a realidade.
Esforço nesse sentido não faltou. Em 1996, o general Zenildo Lucena, ministro do Exército, baixou uma portaria recomendando que não fossem abertos Inquéritos Policiais Militares (IPMs) nos casos de crimes envolvendo drogas nos quartéis. A instrução chegou a ser negada oficialmente, embora a portaria em questão tivesse sido objeto de debate no Conselho Superior do Ministério Público Militar, diretamente interessado no assunto.
As instruções de Lucena eram um esforço para que tudo fosse resolvido intramuros. A critério, portanto, dos comandantes. À época, a subprocuradora-geral da Justiça Militar, Solange Augusto Ferreira, reagiu com coragem e, oficialmente, requisitou informações ao general Lucena.
"Constata-se que durante muitos anos foi subtraída do órgão legal e competente a apreciação dos crimes militares relativos a tráfico e uso de drogas dentro do âmbito da Administração Militar. Inferindo-se que houve impunidade grassando na sociedade militar durante todo esse período", escreveu a subprocuradora.
Nos anos 90, a situação já estava feia. Em julho de 1991, um documento, com o timbre de "Reservado, do Comando Militar do Leste, assinado pelo general Ângelo Barata Filho, dava a dimensão em que a questão se encontrava.
Nas "Diretrizes Gerais para as Atividades de Informações e de Polícia do Exército, na Área do Comando Militar do Leste", conseguido por Carta Capital, o general escreveu que "a função genérica de Polícia do Exército, em tempo de paz, não vem atingindo plenamente suas finalidades, na área do Comando Militar do Leste". O CML abrange os estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais e Espírito Santo.
Já havia, então, segundo o documento, um "elevado número de ilícitos penais que, nos últimos anos, têm envolvido militares de todos os postos e graduações e a ocorrência sistemática de furtos de armas em Organizações Militares (OM) do Exército, com a notória ingerência de elementos vinculados ao narcotráfico"
O problema com o que foi chamado de "segurança da família militar radicada, em sua maior parte, em áreas de baixa renda" já era pressentido, assim como a "inviolabilidade do patrimônio do Exército". Indiferente às restrições constitucionais, o CML propunha "operações de maior vulto em redutos do crime organizado". Leia-se: favelas. Para isso, via como "imprescindível" um sistema de "fluxo de informações, cuja obtenção exigiria o recurso freqüente a processos de investigação sigilosos e até clandestinos".
O general Barata sugeria que os organismos de informações militares "nitidamente subutilizados" deixassem de lado os adversários de sempre, "os grupos subversivos históricos, cuja atuação encontra-se em franco declínio", e mudassem o foco para o crime organizado.
Em 2002, o coronel Diógenes Dantas Filho, em um trabalho rigoroso apresentado na Escola de Comando e Estado maior do Exército, fez o mais seguro levantamento sobre o roubo de armas nas organizações militares (tabela nesta página). Naquela altura, o Exército, a Marinha e a Aeronáutica já haviam abandonado, de uma maneira geral, a política de enfrentar o perigo tentando ignorá-lo. O documento da Academia Militar das Agulhas Negras consolida o que pode ser uma nova política do Exército em relação ao roubo de armas e às drogas nos quartéis. Ela é simples de ser seguida: maior transparência para a sociedade.
POR MAURICIO DIAS
Postado por MiguelGCF
Editor do Impunidade Vergonha Nacional
Nenhum comentário:
Postar um comentário