Pela segunda vez em menos de dois meses, o Supremo Tribunal Federal proporcionou ao País um debate sobre política em termos inteiramente diferentes daqueles patrocinados diariamente por partidos, parlamentares, agentes públicos e personalidades de destaque na sociedade, que consideram vitórias eleitorais motivos suficientes para que se ignorem os demais valores democráticos.
Independentemente da decisão final sobre a cassação dos mandatos dos parlamentares que trocaram de partidos, há o valor da tomada de posição dos ministros do Supremo sobre a fraude representada na cooptação a partir da qual governos pretendem "reorganizar" o resultado de eleições e certos eleitos fazem de seus mandatos um objeto de negociação.
Foi substancial o que o tribunal permitiu ontem ao País assistir em termos de idéias relativas à educação política dos cidadãos. Foram lições valiosas aquelas expostas pelos ministros do STF. Eles não se limitaram a julgar, sob a norma fria da lei, três mandados de segurança.
Disseram com todas as letras que alguém se eleger por um partido e se transferir para outro sem justificativa muito bem embasada equivale a uma fraude eleitoral, usurpação dos direitos do eleitor.
Consolidaram a tese da subversão do sentido do sistema eleitoral representada na apropriação do mandato pelo parlamentar que dispõe dele como se dispõe de um bem particular.
Em agosto, o Supremo já havia indicado tendência de aplicar novas balizas ao exame de práticas viciosas na política, algumas até consagradas pela tradição.
Ontem, a Corte, cada vez mais suprema em sua capacidade de sustentar o resto de respeito que as pessoas têm pelas instituições e de não deixar que a desesperança dizime a crença no sistema representativo, deu uma verdadeira aula magna sobre conceitos solapados pelo cinismo vigente.
O Supremo falou sobre respeito.
Respeito às leis, às minorias, aos partidos, ao resultado das eleições, ao exercício da crítica, ao eleitor, à civilidade, à lógica, à legitimidade, aos compromissos assumidos, ao direito de reformar esses mesmos compromissos dentro da legalidade e da observância de razões que não a mera obtenção de vantagens materiais e, sobretudo, falou sobre a deformação da ótica segundo a qual, uma vez ganha a eleição, tudo o mais deve a essa situação se submeter - inclusive o equilíbrio das forças políticas representadas no Parlamento.
Haverá quem diga que o Supremo, festejado quando do acatamento da denúncia dos 40 do escândalo do mensalão, extrapola e corre atrás de mais reconhecimento popular. Há boa dose de cinismo e amoralidade nesse tipo de avaliação, mas, ainda que fosse verdadeira, melhor um Judiciário que age na direção esperada pela sociedade no tocante à ética das instituições, do que um Legislativo - e por que não dizer, um Executivo - que caminha no sentido oposto.
O Estado de S. Paulo
Por Dora Kramer
Nenhum comentário:
Postar um comentário