A solenidade, como é comum quando empresas de comunicação expandem seus negócios, contou com a presença de autoridades. Estiveram lá o prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab; o governador do estado, José Serra, e, não poderia faltar, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Aquele que se diz “bispo” não titubeou e afirmou, numa referência velada à Rede Globo: “Fomos injustiçados por muitos anos nas mãos de um grupo de comunicação que mantinha e mantém, por enquanto, o monopólio da notícia do Brasil. Daí surgiu o nosso desejo de levar ao fim esse monopólio, de dar às pessoas o direito de se informar por outro canal de notícias, de formar opinião por si mesmas. Daí surgiu nosso desejo em democratizar a informação". Lula também discursou: “A estréia do canal Record News representa um grande momento para a história da televisão brasileira e contribui para que os cidadãos exerçam aquele que é um dos mais sagrados direitos democráticos: o acesso à informação". E, sabe-se lá por quê, encerrou sua fala com um "Liberdade, liberdade, abra as asas sobre nós", lembrando o Hino da República.
Sem dúvida, Lula e Macedo são “homens livres” — inclusive do senso de limites.
O “bispo”, que sempre se negou a ser tratado como “dono” da Rede Record — a emissora está em nome de pessoas ligadas à Igreja Universal do Reino de Deus —, desta feita, é apresentado como “proprietário” da Record News, sem subterfúgios. A nova emissora demandou investimentos da ordem de US$ 7 milhões. No mercado, há quem diga que é muito mais. Se não era o dono da Record e se o dinheiro da sua seita não pode ser transferido para empresas comerciais — na lei, não pode —, de onde vêm os recursos? Qual a origem de sua fortuna?
Em 1992, o valente foi preso sob a acusação de charlatanismo, curandeirismo e estelionato. A perseguição a que ele se refere tem a ver com a reportagem apresentada pelo Jornal Nacional sobre os métodos a que ele recorria e recorre — basta ver a transmissão dos cultos na Record — para arrecadar dinheiro dos fiéis. As imagens que estão no post acima falam por si. Revela-se ali a origem da fortuna de Edir Macedo e a moralidade daquele que diz querer democratizar a comunicação no Brasil.
Neopentecostalismos
Há incrível similaridade entre o petismo e o a Universal. Os dois são derivações deformadas de uma tradição. O petismo açambarcou os chamados movimentos populares e acenou para os pobres com um outro mundo possível, fazendo tabula rasa das dificuldades que outros governantes enfrentaram, atribuindo-as à falta de competência ou de vontade — acreditem: Lula disse isso ontem na entrevista à nova emissora quando se referiu a FHC. O Apedeuta se considera o marco inaugural de uma política, embora, como se sabe, na macroeconomia, recorra ao estoque de medidas de seu antecessor. As melhores “conquistas” de seu governo decorrem de ações decididas pelo governo que ele demoniza.
O que é a Universal? Edir Macedo nada mais fez do que se apropriar das vertentes populares do catolicismo, dando visibilidade à sua dimensão, vamos dizer, mágica, coisa que a Igreja Católica Apostólica Romana, ao longo do tempo, mais combateu do que incentivou. Não custa lembrar que o santo mais popular do Nordeste, Padre Cícero, não é... santo! Até hoje, os pastores da Universal incentivam seus fiéis eletrônicos a pôr um copo d'água perto da televisão para que ela seja “ungida”. Em Dois Córregos, ouvíamos a bênção do Padre Donizetti, uma gravação transmitida pelo rádio — em latim! Estimulados por um sujeito que, depois, virou vereador (Pedro Geraldo Costa), púnhamos um copo d'água sobre o rádio. Também pertence ao catolicismo popular a tradição das benzedeiras — jamais reconhecidas pela Igreja. Os pastores de Macedo “benzem” seus fiéis. Mais do que isso: até outro dia, em programas de televisão, realizavam exorcismos às pencas — mas não aquele regulamentado pelo Vaticano. O de Macedo incorporou, para expulsá-las, as entidades das religiões de origem africana. A Universal (não custa lembrar que “católica”, em grego, quer dizer “universal”) criou uma indústria da fé com os elementos que a Igreja rejeitou. Não estou fazendo juízo de valor. Trata-se apenas de uma constatação.
Qual foi a “novidade” trazida por esse ex-funcionário público pobretão, hoje um dos homens mais ricos do país? A idéia do “desafio” feito a Deus, algo que ele importou de algumas seitas americanas. Isso a que se chama “Teologia da Prosperidade” nada mais é do que o estabelecimento de uma relação mercantil com a fé. Assistam ao vídeo. Ele explica muito bem como a coisa funciona. É preciso que o crente veja o seu pastor como um homem destemido, intermediário entre o mundo celestial e o terreno. Ao fiel cabe fazer a sua parte, com a doação de dinheiro. Os amanhãs sorridentes estão garantidos. Nesta madrugada, enquanto a Record News reapresentava um jornal e depois reprisava as entrevistas de Renan Calheiros e de Lula, a outra Record garantia que, se tudo vai mal da vida do telespectador, basta que ele vá a uma Igreja Universal para participar de uma tal cerimônia dos 318 pastores. Mais tarde, enquanto Serra discutia o Orçamento do Estado e os problemas do Brasil na emissora chique, na outra, uma “empregada” ia fazer macumba no cemitério para ferrar a vida da patroa que a demitira. Por telefone, “amigas” davam testemunhos ao pastor dos males de que foram vítimas: coisa do capeta, do chifrudo, do coisa ruim. Tudo isso tem cura? Tem. Basta ir à Igreja Universal do Reino de Deus.
PT e Universal são duas máquinas de explorar a ignorância, a crendice, a miséria material e a pobreza espiritual. Também o partido, a exemplo da seita, exige uma disciplina de seus militantes — ambos, não custa dizer, cobram dízimo. Macedo põe os seus fiéis para lutar contra os demônios e as entidades malignas, responsáveis diretos por uma vida malsucedida. No PT, esse espírito mau são as “elites”. Tenho cá minhas dúvidas do que pode acontecer com a Universal sem Edir Macedo: é grande a chance de degringolar; tenho certeza do que vai acontecer com o petismo no dia em que não mais tiver Lula: vai se esfacelar em várias correntes.
O petismo está para a renovação da política como a Universal está para a renovação do cristianismo. Trata-se, cada uma no seu campo, de forças regressivas. Uma empurra o país para trás — e acreditem: empurra; o tempo dirá. A outra confere à vida espiritual uma dimensão meramente instrumental: pague, que Deus devolve. Sabem que sou católico e poderão dizer: “Não é assim na sua Igreja?” É claro que não é — ou, quem sabe?, ela estaria ganhando fiéis em vez de perder. Esta crítica, ademais, passa longe das denominações protestantes tradicionais, que levam a sério o seu ministério. Está claro a que “igrejas” estou me referindo. Costumo dizer que não respeito nenhuma mais nova do que o uísque que bebo.
E não me venham dizer que estou atacando a liberdade religiosa. Se um vagabundo ocupa uma concessão pública de TV para dizer que faz milagres, ou ele prova o milagre — quero ver um — ou tem de ir em cana. Acusação: charlatanismo, curandeirismo, estelionato. Afirmo e dou fé: os pastores e “bispos” de Macedo, incluindo ele próprio, não fazem nem operam milagres. Tampouco são intermediários de uma intercessão divina e milagrosa. E aceito a prova dos noves. Em seus templos, que os demônios apareçam à vontade. Vai lá quem quer. Numa concessão pública, não dá. Isso só se faz e se fez porque o Ministério Público e a Justiça têm sido historicamente lenientes com os neopentecostalismos. Assim como a democracia brasileira e as instituições são lenientes com o petismo.
Macedo e Lula tinham o que comemorar, não é? Um lançava a Record News, e o outro, a Lula News. Ambos estão crentes de que, desta feita, derrotam os inimigos. Mas eles têm também uma fragilidade: os aparelhos que criaram dependem de suas respectivas intervenções pessoais. Sem herdeiros, tendem a se esfacelar. E é o que vai acontecer. Para o bem da democracia. E do cristianismo.
Por Reinaldo Azevedo
Um comentário:
E O KIKO MANÉ
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